Montagem de Doroteia, de Nelson Rodrigues, chega a BH neste fim de semana

Peça teatral tem Letícia Spiller no papel-título e Rosamaria Murtinho como a matriarca repressora dona Flávia

Pedro Antunes/Estadão Conteúdo Cecília Emiliana
- Foto: MRM Produções Artísticas/Divulgação

“Quero ser desconstruída por você”, disse Rosamaria Murtinho em um encontro com o diretor Jorge Farjalla em 2014. Aos 81 anos – 60 de carreira – ela já se fez e desfez em cena o suficiente para saber que estava à altura do desafio a que se propôs. Mas chegou a titubear quando Farjalla sugeriu que ela lesse Doroteia, de Nelson Rodrigues, única das chamadas peças míticas do dramaturgo pernambucano que ele ainda não havia montado (as outras são Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados). “Você só pode estar maluco! Não tenho mais idade para fazer a protagonista desse espetáculo, que é uma mulher jovem”, retrucou.

Não era no papel principal que a veterana seria desconstruída. Em Doroteia, que tem estreia prevista para esta sexta (28) no teatro Sesc Palladium, Rosamaria interpreta dona Flávia, matriarca da família que recebe a personagem-título em sua casa. A ex-prostituta Doroteia, vivida por Letícia Spiller, larga a profissão e busca abrigo junto às primas, após a morte do filho. Mas, no espaço sem quartos onde as viúvas Flávia, Maura (Alexia Dechamps) e Carmelita (Jaqueline Farias) sequer dormem para não sonhar, além de não admitirem homens há 20 anos, a regra para o acolhimento é clara: Doroteia, linda e afetuosa, deve abrir mão de sua beleza e dos prazeres sexuais. Para tanto, é orientada a cumprir o mesmo ritual pelo qual passaram suas parentes: casar-se com um marido leproso invisível, que lhe transmitirá suas chagas e a náusea nupcial, que supostamente faz as mulheres criarem ojeriza ao sexo.

Escrita em 1949, a peça foi vexame de público e crítica em sua primeira encenação, em 1950.
A sociedade brasileira, afinal, não estava preparada para as várias analogias e críticas que o texto faz à elite conservadora da época e o acusou de “imoral”.

“FARSA IRRESPONSÁVEL” Quase sete décadas após a desastrosa estreia, a “farsa irresponsável” de Nelson Rodrigues é hoje reconhecida como atemporal. A mão de Jorge Farjalla, contudo, por certo rejuvenesce a montagem. Encenada em formato de arena, ela traz um coro de seis músicos-atores para representar o “jarro”, objeto que Doroteia sempre enxerga ao sentir desejo. A trilha sonora original assinada por João Paulo Mendonça, Leila Pinheiro e Fernando Gajo é outro elemento que moderniza o espetáculo.

O caráter provocativo do texto, tudo indica, permanece intacto. “Entre o Brasil dos anos 1950 e o atual há mais semelhanças do que se pode imaginar. Apesar dos inegáveis avanços, as mulheres ainda têm sua sexualidade vigiada, são condicionadas a negar o envelhecimento e a viver presas a padrões estéticos inatingíveis. A peça, além disso, fala de puritanismo, de gente que aponta o dedo para os outros como forma de negar aquilo que tem dentro de si. O que pode ser mais contemporâneo que isso?”, questiona Rosamaria.

Como a obra de Nelson, ela não se dobra ao tempo. Tampouco a recomendações médicas. Na última sexta-feira, a atriz foi internada às pressas em Porto Alegre (RS), numa das últimas apresentações da temporada gaúcha de Doroteia. Diagnosticada com traquiobronquite, foi aconselhada pelos profissionais que a atenderam a fazer uma pausa no trabalho para cuidar da saúde. Entre antibióticos e sessões de fisioterapia cardiopulmonar, ela promete chegar a BH em puro estado de vitalidade. “Não respeito minha condição de idosa.
Eu me jogo no chão do teatro, dou piruetas. Tenho 60 anos ininterruptos de trabalho, não vou parar tão cedo e minha intenção é comemorar esse marco fazendo teatro. Bom teatro!”, afirma.

Doroteia
De: Nelson Rodrigues. Direção: Jorge Farjalla. Com Rosamaria Murtinho, Leticia Spiller, Alexia Dechamps, Dida Camero, Jaqueline Farias e Maureen Miranda. Sesc Palladium (Av. Augusto de Lima, 420, Centro), nesta sexta (28) e sábado (29), às 21h. Ingressos: R$ 75 (inteira). Informações: (31) 3270-8100.


ATRIZ POR ACASO

Nascida em 1935, Rosamaria Murtinho iniciou a carreira aos 18 anos, bem por acaso. Naquela época, pensava em ser bailarina ou estudar direito.
O jornalista Paulo Francis mudaria sua vida para sempre. Ele dirigia o Stúdio 53, grupo de teatro amador do irmão dela, Carlos Murtinho. Francis sugeriu a Carlos que convidasse a irmã para substituir uma atriz que ficou doente a poucos dias da estreia de uma peça. Desde então, ela nunca mais saiu de cena. Sua estreia na TV se deu em 1962, no programa Vigilante rodoviário, exibido na extinta TV Tupi. Rosamaria acumula 55 novelas e oito filmes no currículo. “Teatro, eu já perdi a conta”, diz. Casada há 58 anos com o ator Mauro Mendonça, é mãe de três filhos: Mauro Mendonça Filho, João Paulo Mendonça e Rodrigo Mendonça.
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