Em 2000, conta o diretor de teatro João Neves, operários espanhóis, ao fazer uma reforma numa casa antiga, descobriram uma biblioteca com livros que fora escondida havia mais de quatro séculos, devido à censura da Inquisição. Entre os volumes estava o que talvez seja a primeira edição de Lazarillo de Tormes. Um texto de autor anônimo, espanhol, do século 16, considerado um retrato debochado e ácido da sociedade medieval, que conta uma história mirabolante sobre um personagem que apronta todas para sobreviver. O texto abarca desde o seu nascimento até o seu casamento, na idade adulta, passando pela infância miserável.
Fã do texto, João das Neves produziu para um amigo uma versão da história para o teatro, incorporando inclusive a história de como ela foi achada. Como o projeto não foi para a frente, decidiu ele mesmo encenar a obra, assumindo inclusive o papel-título. A volta aos palcos, depois de quase duas décadas trabalhando somente como diretor, deu-se, portanto, por seu encanto com o personagem e o texto. ''E da minha saudade dos tempos que fui ator'', observa. ''Estar no palco é uma experiência fascinante.
SESSÃO ÚNICA Lazarillo de Tormes tem apresentação única hoje, às 21h, no Grande Teatro do Sesc Palladium. Segundo João das Neves, mesmo passados quatro séculos, o texto segue muito divertido e atual. ''Lazarillo é o tetravô dos nossos heróis populares'', afirma, comparando o tipo a Macunaíma. A montagem é centrada no ator, com fidelidade rigorosa ao texto do século 16 e, ao mesmo tempo, com momentos abertos ao jogo cênico.
''Puxamos para o lado histriônico, cômico, ao máximo'', conta. Figurinos e cenários de Rodrigo Cohen (que também está no palco) cuidam de evocar a cultura popular rural e urbana, nova e antiga, do cordel ao hip-hop.
''As histórias que o ser humano inventa, as situações sociais que enfrentamos, nossos embates para sobreviver são os mesmos, mesmo quando ambientados em sociedades diferentes'', argumenta Neves, analisando o que faz do texto um clássico da literatura.
A mágica de, passado quase meio milênio, a obra continuar atual, para o diretor, também tem explicação: ''Lazarillo é grande arte. E grande arte não tem tempo, tem força para atravessar os séculos e continuar atual. Lemos hoje Camões com o mesmo prazer que lemos Paulo Leminsky. Quem fica superado com o passar do tempo é a moda''. A trilha sonora, apresentada ao vivo, foi criada pela cantora Titane em parceria com André Siqueira.
Lazarillo de Tormes
Com João das Neves, Glicério Rosário e Rodrigo Cohen. Hoje, às 21h, no Grande Teatro do Sesc Palladium, Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro, (31) 3214-5350. Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia).