'Bom dia, Verônica' aborda a violência contra mulheres no Brasil

Tainá Müller, Camila Morgado e Eduardo Moscovis estrelam o primeiro thriller da Netflix no país, que estreia na quinta

Mariana Peixoto 29/09/2020 04:00
FOTOS: SUZANNA TIERIE/NETFLIX
Camila Morgado é Janete, oprimida pelo marido, Brandão (Eduardo Moscovis), que a transforma em cúmplice de seus crimes (foto: FOTOS: SUZANNA TIERIE/NETFLIX )
O silêncio dos inocentes brasileiro. Essa era “apenas” a pretensão do escritor e roteirista Raphael Montes ao se unir à criminóloga Ilana Casoy para criar, a quatro mãos, um thriller investigativo. Ele viria com sua experiência como ficcionista (recém-chegado aos 30 anos, é o mais jovem e celebrado autor da literatura policial contemporânea do país) e ela com a da vida real (especialista em perfis psicológicos de criminosos, com ênfase no estudo de serial killers, já publicou livros sobre crimes famosos, como os casos Nardoni e Richthofen).

Ainda há de nascer um personagem tão perverso e brilhante quanto Hannibal Lecter. O tenente-coronel Brandão não devora ninguém, mas sua crueldade com as mulheres impressiona. A ele só interessam jovens pobres vindas de São Luís do Maranhão, mas sua maior vítima é a própria mulher, Janete.
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A escrivã Verônica (Tainá Müller) enfrenta o paternalismo tóxico do delegado Carvana (Antônio Grassi)


CONEXÃO 

É ela quem encontra as jovens na rodoviária de São Paulo, e que logo serão aniquiladas pelo marido. Presa em um casamento que lhe nega tudo – amigos, família, até mesmo qualquer tipo de contato telefônico –, Janete sofre, calada, com os rompantes de violência de Brandão, que vão em um crescendo. Começa a perder a conexão com o mundo real, até que se depara com Verônica, uma jovem escrivã da polícia.

Bom dia, Verônica (2016), primeiro fruto da parceria Montes/Casoy, foi publicado pela Darkside Books. O romance é creditado a Andrea Killmore, pseudônimo criado pelo autor por “questões de segurança”. Era o que se dizia quatro anos atrás, já que apenas em 2019 a brincadeira foi revelada ao público.

Em 2017, a Netflix procurou Montes pedindo a ele o roteiro de um thriller investigativo. “Se um livro comunica, imagina uma série que vai para 190 países. Na época, propus a adaptação de Bom dia, Verônica. Eles (a Netflix) disseram que iriam comprar os direitos. Falei para ligarem para meu advogado, pois ele diria quem era o autor”, conta Montes.

Adaptação em oito episódios do livro, a série Bom dia, Verônica estreia na quinta-feira (1º/10) como o principal investimento da Netflix no Brasil neste semestre. É o primeiro thriller da plataforma de streaming no país. Mais: chega com elenco e ficha técnica que dispensam apresentações, com nomes oriundos da televisão e do cinema. Mais ainda: é, até o momento, a primeira (e provavelmente única) série nacional da Netflix em 2020 não voltada para o público jovem.

Ainda que seja Verônica (Tainá Müller) a personagem-título, os protagonistas são três: Janete é defendida por Camila Morgado (sem dúvida, a grande interpretação da série) e Brandão por Eduardo Moscovis. Montes, criador da série, divide com Casoy tanto o roteiro quanto a produção-executiva. A direção-geral é de José Henrique Fonseca, que dirigiu várias histórias criadas por seu pai, Rubem Fonseca, o mestre brasileiro do romance policial – o filme O homem do ano e as séries Lúcia McCartney e Agosto.

Cansada do trabalho burocrático que não lhe dá nada além de dor de cabeça e uma constante invisibilidade no meio policial, a escrivã Verônica assiste a uma jovem suicidar-se em plena Delegacia de Homicídios. Ela foi vítima do golpe “boa-noite, Cinderela”, aplicado por um conquistador em mulheres por meio de um site de namoro. Esse é o mote da história.

Tal narrativa, que no livro foi bem desenvolvida até o final, perde a importância na série quando Verônica conhece Janete. Já no momento inicial, a escrivã entra de cabeça no drama dessa mulher. Ao conseguir a confiança dela (e ingressar na casa), Verônica percebe que o marido não apenas abusa da parceira – ele mata mulheres.

Sem amparo dos superiores (o delegado Carvana, papel de Antônio Grassi, a trata como filha, mas não quer dela mais que cafezinho), com um drama pessoal (o pai, ex-policial, não fala nem reconhece ninguém) e problemas em casa (o marido e os filhos acabam ficando em segundo plano), Verônica descobre que para fazer justiça terá de agir praticamente sozinha.
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Raphael Montes e Ilana Casoy: parceria na TV e na literatura


TIRO 

Tainá Müller passou por ampla preparação para o papel. Fez aulas de luta, defesa pessoal, tiro, passou por um laboratório em delegacia e estudou a fundo o feminicídio. “Fiquei surpresa ao ver onde ele brota. Muitas vezes, o feminicídio é um crime inesperado para as pessoas ao redor, mas não para a vítima, porque ele vem de uma construção. O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking (de feminicídios) no mundo, ou seja, o quinto lugar mais perigoso para ser uma mulher”, afirma a atriz.

Para Camila Morgado, Janete é resultado de manipulação psicológica. “O Brandão a chama de ‘passarinha’, mas cortou suas asas. Chega um momento em que a vítima perde tanto a autenticidade que ela entra no processo de esquecimento sobre quem é.”

A casa de Brandão e Janete, um dos principais cenários da série, serve de contraponto à opressiva relação do casal. O ambiente é colorido, aberto, a dupla só veste cores cítricas. “Há um monte de signos embutidos ali. Brandão tem um peso físico (Moscovis ganhou alguns quilos para interpretar o personagem) que é consequência disso tudo. Ele me parece um pouco o estado da nossa polícia, com a cara pesada, meio disforme, decadente”, diz o ator.

Bom dia, Verônica nasceu de casos reais. “A história da Janete não vem de uma mulher só. Entrevisto famílias, mulheres de serial killers. Houve uma que me impactou muito. A polícia me pediu para entrevistar a mulher de um matador para tentar ver se ela era cúmplice ou não. Ela chorava muito e dizia: ‘Doutora, a senhora que sabe tanto, me ensina: como paro de gostar dele?. Ele é um monstro, mas me tirou da rua e tenho filhos com ele.’ São mulheres que se sentem culpadas”, comenta Ilana Casoy.

Ainda que fale da realidade brasileira, Bom dia, Verônica traz muitas referências de séries americanas, já que, no fim das contas, é a clássica trajetória de gato e rato. “O que fizemos foi encontrar dois autores brasileiros para contar uma história local. A gente procura contar uma história a mais próxima das situações reais. Não há a intenção de reproduzir conteúdo estrangeiro, mas ele nos inspira muito, já que o thriller é um gênero pouco produzido no Brasil”, comenta Maria Angela de Jesus, diretora de conteúdo original da Netflix no país.

De acordo com a executiva, o público jovem é “uma força grande na plataforma”, mas, mesmo que haja “muitos conteúdos nessa linha”, a Netflix não se limita a um gênero. Maria Angela diz que optar por atores já conhecidos do grande público foi uma consequência da própria narrativa.

“Escolhemos o elenco a partir da história que queremos contar. Para uma série com personagens muito fortes, precisávamos de atores com amplitude de interpretação”, explica.

FUTURO 

Sem entregar nada da história, o que dá para dizer é que Bom dia, Verônica termina com um gancho para a segunda temporada – o que, obviamente, não se pode confirmar por ora.

“A gente fica falando de thriller, mas um dos grandes ganhos da série é o drama. O drama é universal, ele viaja para 190 países. Então, tivemos todos os cuidados de tratar de questões universais. Além da caçada a um serial killer, a série é humana. E é o humano que comove e engaja”, finaliza Montes, confirmando que já está às voltas, ao lado de Casoy, com o segundo livro da série, Boa tarde, Verônica.

BOM DIA, VERÔNICA
. Série em oito episódios
. Estreia quinta-feira (1º/10), na Netflix

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