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'Amor de mãe' chega à metade com promessas não cumpridas

O diretor José Luiz Villamarim e o fotógrafo Walter Carvalho procuram dar tratamento cinematográfico à novela - Foto: Globo/Divulgação
A novela Amor de mãe estreou na faixa das 21h da Globo no fim de novembro passado, trazendo várias inovações. A começar por sua autora, Manuela Dias, que chegou ao horário mais nobre da teledramaturgia brasileira depois de ter assinado séries aclamadas pela crítica, como Ligações perigosas e Justiça, ambas de 2016.



O objetivo do folhetim é conquistar a audiência com um texto esmerado e uma trama envolvente, fincada em questões que estão na pauta do dia, como a educação (ocupação de escolas), a violência urbana (milícias) e a mudança climática (ativismo ambiental).
Para contar a história, o diretor mineiro José Luiz Villamarim optou por um estilo que se aproxima do cinema, tendo ao seu lado o fotógrafo Walter Carvalho, que assina a fotografia de alguns dos mais elogiados longas brasileiros. O elenco é capitaneado por Regina Casé (Lurdes), Adriana Esteves (Thelma) e Taís Araújo (Vitória).

Um aspecto ousado de Amor de mãe, que Manuela Dias fez questão de ressaltar quando o folhetim estreou, é que a história não teria um vilão. A escolha seria uma forma de evitar o maniqueísmo e dar a cada personagem a complexidade humana, que inclui aspectos positivos e negativos e a capacidade de fazer tanto o bem quanto o mal.


 
No entanto, Álvaro, papel de Irandhir Santos, e Belizário, interpretado por Tuca Andrada, se mostraram até aqui personagens capazes somente de atitudes negativas, como os típicos vilões.
 
Visual da corajosa professora Camila (Jéssica Ellen) faz lembrar a vereadora assassinadas Marielle Franco - Foto: João Cotta/DivulgaçãoÉ notório, porém, que “existe uma teia de conexões entre os personagens, cuidadosamente planejada pela autora, que já havia feito algo semelhante em Justiça. Cada coadjuvante orbita a história de uma das protagonistas, por vezes influenciando o desenrolar da novela, sem que tudo se transforme numa confusão. É um trabalho difícil e minucioso, mas que, até agora, tem trazido boas surpresas”, como afirma o jornalista carioca e fã da novela Guilherme Alves, que criou um organograma explicando as múltiplas conexões entre os personagens. Alves publicou o organograma em suas redes sociais (@guilhotinas) e teve sua postagem curtida até pela autora de Amor de mãe.

Um dos pontos altos da novela é a representatividade negra. Além de Taís Araújo no papel de uma das protagonistas, os atores Jéssica Ellen (Camila), Erika Januza (Marina), Dan Ferreira (Wesley), Douglas Silva (Marconi) e a estreante Maria (Verena) têm papéis relevantes na história, como observa Rafael Barbosa Fialho Martins, doutorando em comunicação social e um dos realizadores do podcast TV ao cubo.

Ele, no entanto, aponta um viés na escalação da estrela principal. “É sempre positivo, mas parece que só existem a Taís e a Camila Pitanga para ser a protagonista negra. Mais do que colocar atores negros na tela, tem que se atentar para que tipo de personagens eles estão sendo escalados. O personagem do Douglas Silva é um bandido e cai naquele velho estereótipo”, observa.



Quanto à representatividade das pessoas LGBT, a novela já é mais tímida. Há apenas um personagem gay, o advogado Miguel (Giulio Lopes), pai de Davi (Vladimir Brichta) e melhor amigo de Lídia (Malu Galli). Uma queixa dos telespectadores que tem reverberado na internet é a ausência de idosos na trama. A atriz mais velha em cena é Regina Casé, de 65 anos.

Amor de mãe nos lembra Vale Tudo, não por acaso

Desde Vale tudo, uma novela não se propõe a discutir o presente político do Brasil com tanta veemência quanto Amor de mãe. A atual novela das 21h da TV Globo é um assumido folhetim à moda antiga, cheio de coincidências, triângulos amorosos, filho perdido que reencontra a mãe..., mas utiliza isso como ponte para tratar de temas urgentes na atual conjuntura do país.

A associação a Vale tudo não é mero acaso. A trama de Gilberto Braga foi exibida num momento político melindroso – entre 1988 e 1989 –, quando o Brasil, recém-saído de uma ditadura militar, tentava se equilibrar sobre uma nascente democracia e o povo enxergava com mais nitidez os contornos da corrupção. Amor de mãe chega num momento ainda mais trágico, marcado pela ascensão da extrema-direita e uma acirrada polarização política.



Um momento que justifica um discurso ainda mais contundente – reforçado até mesmo em outros programas da Globo, como o humor crítico e as paródias ácidas no Zorra, o drama da ótima série Segunda chamada – que discute os mesmos temas da novela no microcosmo de uma escola pública noturna – ou na novela Bom sucesso, que partiu em defesa dos livros e da leitura.
 
Só que, além de colocar em pauta a discussão em torno da ética, como fez Gilberto Braga, Manuela Dias, autora de Amor de mãe, vai além. A luta ambiental, a ganância do capital, diálogos feministas ou críticos ao machismo e romances inter-raciais sem um contexto de conflito (alguém pode achar excesso de romantismo da autora, mas ela já disse numa entrevista que foi uma opção pessoal naturalizar o tema), por exemplo, atravessam toda a história.
 
E a discussão sobre ética, embora mais evidente na personagem Vitória (Taís Araújo), está presente em atos de todos os personagens. Inclusive nos da mãe coragem Lurdes (Regina Casé), capaz de tudo para proteger seus filhos – até entrar num presídio levando um celular dentro de um bolo ou dar um jeito de acessar sem autorização o arquivo de um hospital.


Mas, em meio a tudo isso, nada é tão emblemático quanto a personagem Camila (Jéssica Ellen), a professora idealista e corajosa, negra e de origem pobre de Amor de mãe, que, em busca de justiça, enfrenta uma diretora sem escrúpulos, um policial truculento e quem mais vier. Camila, aliás, lembra visualmente Marielle Franco, com seu turbante e sua altivez. E isso não deve ser coincidência.

Será que a professora terminará misteriosamente assassinada por milícias? É bem provável que não. O público que vibra com Amor de mãe certamente não vai se contentar em ver, no final, Álvaro (Irandhir Santos), o empresário sem nenhuma moral, fugir num jatinho dando uma banana para o Brasil, como fez Marco Aurélio (Reginaldo Faria) em Vale tudo. Os tempos são outros, e a capacidade redentora da ficção nunca se fez tão necessária.