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Minissérie impactante da HBO relembra a tragédia de Chernobyl

No hospital, o bombeiro Vasily Ignatenko (Adam Nagaitis) pede à mulher, Lyudmilla (Jessie Buckley), que abra a janela do quarto. Os poucos raios de sol o incomodam de tal forma que ela coloca óculos nele. Vasily pede que Lyudmilla descreva o que vê. Sem olhar pela janela, a mulher cita o Kremlin e a Catedral de São Basílio. “Eu disse que te mostraria Moscou”, ele diz, tentando sorrir.


A sequência é de uma força dramática impressionante. Vasily está morrendo da pior forma possível. Mais tarde, seu corpo vai virar a massa multiforme em que não é possível aplicar morfina para diminuir a dor. Vasily será enterrado em caixão de zinco em uma cova devidamente cimentada.

Chernobyl, coprodução da HBO/Sky, está chegando a seus momentos finais.
Nesta sexta-feira (31), o canal pago exibe o quarto dos cinco episódios da minissérie criada por Craig Mazin – que, surpreendentemente, ficou conhecido como autor de sequências das comédias Todo mundo em pânico e Se beber, não case.

A produção acompanha os desdobramentos do pior acidente nuclear da história. À 1h23 de 26 de abril de 1986, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Usina Nuclear de Chernobyl, a 110 quilômetros de Kiev, na Ucrânia (ex-União Soviética). O bombeiro Vasily foi um dos primeiros a chegar ao local.

Trinta e uma pessoas (bombeiros e funcionários da usina, principalmente) morreram nas semanas subsequentes. Indiretamente, o acidente matou, posteriormente, milhares de cidadãos que ficaram expostos à radiação (cerca de 600 mil pessoas trabalharam na área). De acordo com o Greenpeace, foram 93 mil vítimas fatais de câncer. Há ainda os milhares que sofreram sequelas.

“Muitos vão morrendo. Morrem de repente.
Caminhando. Estão andando e caem mortos. Adormecem e não acordam mais”, afirmou Lyudmilla Ignatenko em depoimento à escritora Svetlana Aleksiévitch. A ucraniana, vencedora do Nobel de Literatura em 2015, abre o livro Vozes de Tchernóbil (Cia. das Letras) com o depoimento da viúva do bombeiro.

Assim como Vasily e Lyudmilla, outros personagens reais compõem a versão dramatizada. Os três protagonistas são Valery Legasov (Jared Harris), físico nuclear soviético, um dos primeiros a entender a dimensão do desastre sem precedentes; Boris Shcherbina (Stellan Skarsgard), o político designado para liderar a comissão do governo em Chernobyl; e Ulana Khomyuk (Emily Watson), física nuclear escalada para esclarecer o caso. Apenas a personagem feminina é ficcional.
André Fran passa pelo exame de radiação em Chernobyl - Foto: Multishow/divulgação
Uma fala de Legasov resume a dimensão da explosão: “Cada átomo de urânio é como uma bala. Penetra tudo em seu caminho – metal, concreto, carne.
Agora, Chernobyl possui mais de 3 trilhões dessas balas.” O suicídio de Legasov, dois anos depois dos acontecimentos, dá início à narrativa. A partir da explosão, cujas causas não foram devidamente esclarecidas, acompanhamos uma montanha-russa.

Os fatos são apresentados num thriller em tempo real, seguindo as reações confusas de várias pessoas que estão muito perto do reator nuclear. Homens usam máscaras cirúrgicas, obviamente impotentes diante da invasão atômica; a cidade de Pripyat, que abriga os trabalhadores de Chernobyl, leva uma vida normal um dia após a explosão (a evacuação de milhares de moradores demorou mais de 24 horas); a KGB coloca agentes atrás das pessoas que trabalham na tentativa de conter a radiação; o Kremlin tenta esconder o que realmente ocorreu.

Ao mirar temas como vigilância e distorção da verdade, Chernobyl, em seu misto de terror, ficção científica e drama humano, acaba se aproximando do mundo contemporâneo. E como é real.

Por isso, a produção conquistou a posição de série mais bem avaliada no site especializado IMDB, com nota 9,7, superando os blockbusters Game of thrones e Breaking bad.

Jornalista passou dois dias em Chernobyl


“É como passear em uma cidade fantasma pós-apocalíptica. A natureza tomando conta dos prédios. Você entra no cinema, hospital, escola, está tudo como se tivesse sido abandonado do dia para a noite. É muito impressionante, pois o perigo é invisível. É simplesmente um nada, pois mesmo que o indicador de radiação esteja em níveis altíssimos, você não sente frio, calor, cheiro”, afirma o jornalista carioca André Fran.

Em 2012, à frente do extinto Não conta lá em casa, programa do canal Multishow, ele esteve por dois dias em Pripyat, que lhe renderam quatro episódios (disponíveis para assinantes Globosat). Em Kiev, Fran e equipe compraram um pacote de uma agência de turismo ucraniana. Viajaram de van, foram recebidos por uma guia local, dormiram no alojamento e comeram no refeitório criado para os funcionários que trabalham na contenção da radiação.

Em 2011, a Ucrânia abriu a zona de exclusão que rodeia a usina para o turismo.

É possível passar algumas horas no local ou até dois dias, como fez Fran. É proibido fumar, sair do itinerário oficial, consumir álcool, tocar ou levar algum objeto. No Instagram, proliferam selfies de turistas.

“A recomendação é usar roupas bem cobertas e jogar tudo fora assim que deixarmos o local”, relembra Fran. Em todos os lugares há medidores de radiação. “Chegamos até perto do reator, hoje chamado sarcófago, por causa da cobertura de cimento e metal que colocaram em cima”, explica. Ali, a visita não pode ultrapassar alguns minutos. O jornalista, que tem acompanhado com atenção a série, afirma que a reconstituição é perfeita. (MP)

 

Crítica: Chernobyl apresenta a dose certa de cada gênero 

Tensão, política, drama, catástrofe, história, terror. Quase sempre tudo no mesmo capítulo, mas na dose certa. Eis a razão do sucesso de Chernobyl, aclamada pela crítica mundial mesmo antes da exibição dos capítulos finais.

O reconhecimento é merecido: há uma rara sucessão de acertos. A começar pelas escolhas narrativas do criador, Craig Mazin. O roteirista norte-americano, até então conhecido por comédias como Se beber.. não case, consegue amalgamar, em cada episódio, os gêneros citados acima sem fazer uma colcha de retalhos.

A trilha sonora da islandesa Hildur Guonadottir (A chegada), minimalista e pontuada por ruídos perturbadores, contribui para o clima de permanente pesadelo. Há ainda a impressionante reconstituição de época, valorizada pela fotografia em tons sóbrios e esmaecidos.

No elenco afiado, o destaque maior vai para o reencontro da dupla de atores projetada mundialmente em 1996 pelo dinamarquês Lars Von Trier em Ondas do destino. Stellan Skarsgard e Emily Watson têm atuações brilhantes em dois dos três papéis principais – o outro ficou com Jared Harris, de Mad Men, com desempenho igualmente notável.

Ao contrário de Game of thrones, a mais badalada produção da história da HBO, em Chernobyl não aparecem dragões para destruir milhares de vidas; como em outras tragédias criminosas, no exterior e no Brasil, as armas de destruição em massa são a inépcia e o abuso de poder perpetrados pelo ser humano. (Carlos Marcelo)

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