Inspirado em Shakespeare, Dia de Reis é totalmente produzido em MG

História do cineasta Marcos Pimentel e do roteirista Alexis Parrot valoriza as tradições populares do estado

por Walter Felix 24/12/2018 08:25
Tempero Filmes/Divulgação
Na produção que a Globo Minas exibe hoje, às 14h, a atriz belo-horizontina Barbara Colen interpreta violeira que se disfarça de homem para tocar na Folia de Reis (foto: Tempero Filmes/Divulgação)
A tradição mineira é pano de fundo do telefilme Dia de Reis, produzido pela Tempero Filmes, que vai ao ar nesta véspera de Natal, na Globo Minas. Inspirada na peça Noite de reis, de William Shakespeare, a produção também bebe na fonte de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, para contar a história de amor entre Dora da Viola (Barbara Colen) e Orsino (Germano Melo). Obstinada a fazer parte da celebração de folia de reis – em que determinados grupos não permitem a participação de mulheres –, a heroína se disfarça de homem, o que não a impede de gerar a paixão no parceiro de folia.

O cineasta Marcos Pimentel e o roteirista Alexis Parrot desenvolveram o argumento e o inscreveram no projeto da Globo Minas, que buscava ideias para seu terceiro especial de fim de ano totalmente mineiro. Em 2016 e 2017, respectivamente, a emissora exibiu Santino e o bilhete premiado e O Natal de Rita.

“Surgiu essa ideia de adaptar Shakespeare para o sertão de Minas, tendo a folia de reis como tema central. Quisemos manter a universalidade do texto original, permeado com traços extremamente mineiros. Como resultado, temos uma história que interessa a qualquer lugar, mas toca de forma especial o povo de Minas”, define Marcos Pimentel.

O telefilme representa uma novidade na carreira do cineasta de Juiz de Fora, dedicada integramente aos documentários. “É quase um óvni dentro da minha cinematografia”, brinca Marcos, que tem no currículo A parte do mundo que me pertence (2017) e Sopro (2014). “Mas meus filmes sempre flertaram com a ficção. O grande desafio, desta vez, foi fazer um projeto de caráter comercial e em diálogo com a audiência da TV aberta, enquanto a minha obra aponta para o cinema autoral, direcionada a um público muito restrito.”
 
Tempero Filmes/Divulgação
As gravações foram realizadas em Cachoeira do Manteiga, vilarejo à beira do Rio São Francisco (foto: Tempero Filmes/Divulgação)

SOTAQUES Em Dia de Reis, o diretor quis exibir a diversidade cultural de Minas. Em 2017, a folia de reis foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial do estado pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep). “Nas cenas dos cortejos, fizemos uma pesquisa intensa para selecionar músicas de diferentes regiões do estado, para que os vários sotaques mineiros fossem representados”, conta Marcos, atentando às manifestações presentes também na capital.

A preocupação se estendeu à escolha de atores. A população de Cachoeira do Manteiga, distrito de Buritizeiro, onde a produção foi rodada, serviu de elenco de apoio e figuração às filmagens. Para compor o grupo Estrela do Belém, chefiado por Orsino, foram convidados integrantes de folias da localidade.

“Incomoda, ao assistir a um filme, bater o olho no ator e sentir que ele não é da região em que a história é ambientada. Busquei um elenco com tipos físicos que fossem possíveis de ser encontrados no Norte de Minas. Passamos um bom tempo no local, com um contato estreito com a população”, diz Marcos. Cachoeira do Manteiga é um pequeno vilarejo, que conta com apenas um restaurante e nenhum hotel. Os artistas se hospedaram em um clube de pesca, o que aprofundou os laços entre a equipe e os habitantes.

O Rio São Francisco, elemento fundamental para aqueles moradores, tem importância à altura na história. “A população mostra uma relação de dependência com o rio, que envolve seu sustento, sua religiosidade e espiritualidade. Mais que cenário, usamos o São Francisco como escoadouro do destino dos personagens”, comenta o diretor.

DORA DA VIOLA Nas águas do Velho Chico, a heroína Dora se desloca com o pai e o irmão rumo à fictícia cidade de Ilíria. Com o naufrágio do barco, ela é salva e acolhida por pescadores da região. Ao se fazer passar por Cesário para tocar na festividade natalina, a moça se apaixona por Orsino, dono do atacado da cidade e responsável pela folia Estrela do Belém. Forma-se um triângulo amoroso com a viúva Olívia (Talita Braga), também alvo do interesse de Orsino. A ação se desenrola entre a véspera de Natal e o Dia de Reis, celebrado em 6 de janeiro.

A belo-horizontina Barbara Colen foi a escolhida para dar vida a Dora da Viola. Atriz desde 2010, ela integrou o elenco do elogiado Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, interpretando a protagonista Clara em sua fase jovem. Após salto temporal, a personagem é assumida por Sônia Braga.

Em Dia de Reis, os truques da ficção escondem o fato de que a intérprete é pouco familiarizada com a viola. “Além de uma dublê, tive a ajuda do Leonardo Mendonça (diretor musical do filme), que conhece muito da musicalidade da folia. Não se trata de uma simples apresentação, mas de um ritual, em que o canto traz marcas da oralidade. São canções muito populares e qualquer erro ou mudança significaria muito”, observa Barbara.

O contato com a festividade vem da adolescência, quando viajava ao Norte de Minas, terra da família de seu pai. “Dora tem muito da minha avó Maria Marly: o sotaque, a voz e o jeito de ser, com uma potência e uma presença muito forte”, diz. Além da matriarca, a atriz se inspirou em Diadorim na composição da personagem. Como a personagem de Grande sertão: veredas, Dora da Viola se disfarça de homem e, travestida, desperta a paixão em um homem convicto da própria macheza.

“Dora sustenta uma mentira que a leva a um conflito grande e interessante: tocar na folia como forma de homenagear o pai ou se revelar mulher em nome do amor que sente por Orsino. O livro me ajudou a encontrar as sutilezas dessa atração entre dois corpos que não podem se aproximar, mas mantêm uma força entre eles”, avalia a atriz.

Com esse enredo, Dia de Reis também aborda a discriminação da mulher. Durante as gravações, Barbara teve contato com mulheres que crescem com o desejo de participar da folia de reis, mas são impedidas pelas convenções. “Esses rituais se preservam justamente se fundamentando nas tradições. Existe um formalismo que deve ser mantido na folia de reis e, diante disso, as mudanças são mais complicadas”, opina Barbara. “O telefilme tem a chance de dar visibilidade a essas meninas e mostrar que mesmo os ritos religiosos podem

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