Traje das mulheres escravizadas usado na série The handmaid´s tale vem sendo adotado em atos públicos

A estilista Ane Crabtree comenta o fato de o figurino criado por ela ter adquirido vida própria

por AFP 20/10/2018 10:01
JOSE LUIS MAGANA/AFP
A ativista Payton Sander protesta contra a nomeação do juiz Brett Kavanaugh à Suprema Corte americana. Ele é acusado de má conduta sexual durante os anos de colégio e faculdade (foto: JOSE LUIS MAGANA/AFP)

Nos Estados Unidos, na Argentina ou na Irlanda, em diversos países, a túnica vermelha e a touca branca inspiradas nas vestimentas das aias da série distópica de Margaret Atwood The handmaid’s tale se tornaram um poderoso símbolo de protestos de mulheres contra a agressão sexual (EUA) e em defesa do direito ao aborto (Argentina e Irlanda), entre outras bandeiras amparadas pelo movimento #MeToo.

Embora o romance O conto da aia tenha sido lançado pela escritora canadense em 1985, só agora alcançou fama mundial, com a série de televisão que a plataforma Hulu lançou em abril de 2017. Muito rapidamente, a história que mostra os Estados Unidos transformados em uma teocracia, com mulheres escravizadas para procriar, tornou-se uma parábola das tendências da direita americana e da prática de abuso sexual contra mulheres, aos olhos dos opositores do presidente Donald Trump.

O figurino usado pelas mulheres da fictícia República de Gileade (e que lembra os hábitos das freiras), prevaleceu como um grito de guerra. Manifestantes vestiram a peça nos Estados Unidos durante o processo de confirmação do juiz Brett Kavanaugh à Suprema Corte, acusado de uma tentativa de estupro quando adolescente. O mesmo fizeram outras mulheres em protestos pelo direito ao aborto na Argentina, Irlanda, Bélgica ou em manifestações anti-Trump na Polônia.

“Durante os dois anos e meio em que trabalhei na série, não me dei conta do impacto”, disse a figurinista Ane Crabtree, de 54 anos, filha de pai americano e mãe japonesa. As filmagens foram intensas e as pausas escassas. Somente quando terminaram as gravações Crabtree percebeu que seus figurinos haviam se tornado um manifesto.

“Mesmo hoje, não capto toda a amplitude do movimento”, disse a estilista, que começou sua carreira na moda na década de 1990 e estava inteiramente vestida de preto no momento da entrevista. “Mas, para mim, é uma excelente notícia, é muito gratificante emocionalmente. Como uma artista que tenta expressar o espírito dos tempos, certo? Você tenta entender como se comunicar e estar em sintonia emocional com as pessoas.”

Jim WATSON/AFP
Mulheres usam figurino de The handmaid´s tale para protestar no Congresso durante o processo de sabatina de Brett Kavanaugh (foto: Jim WATSON/AFP)

MARCO

O guarda-roupa da série representa claramente um marco em sua carreira, mas, quando o criou, a estilista passou muitas noites sem dormir, em dúvida se o trabalho de fato estava bom. “Eu tinha muito amor e respeito pela série. Não queria falhar”, diz ela.
Margaret Atwood vestiu de vermelho as mulheres escolhidas para serem regularmente estupradas, a fim de procriar, mas “eu queria fazer algo diferente, não um look com conotações históricas, em que ninguém se reconheceria em 2016”, afirma Crabtree.

“Queria que as pessoas sentissem medo. Queria que fosse normal e, ao mesmo tempo, assustador. Às vezes, as coisas mais terríveis são as coisas normais. Pois é aí que se diz ‘Ah, meu Deus, isso poderia acontecer, poderia realmente acontecer comigo’.”

Ane Crabtree foi bem-sucedida em sua aposta, mas não saiu ilesa da experiência. “A série mexe com muitas coisas na minha vida pessoal, mas até este mês eu não percebia isso”, disse a criadora. Ela relatou que inseriu no trabalho sua “raiva silenciosa” após a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016, mas, acima de tudo, diz que a temática da série trouxe de volta os abusos sexuais que sofreu quando era criança.

“Eu não me lembrava de nada até meus 28 anos e, mesmo depois disso, as lembranças permaneceram enterradas de maneiras diferentes”, afirmou. Por isso, apesar do enorme sucesso, decidiu abandonar seu trabalho antes das gravações da terceira temporada. “A série é ao mesmo tempo dolorosa e magnífica... A história não é sobre mim e, ainda assim, tem um efeito terapêutico de longo prazo”.

Atualmente dedicando-se a outros projetos, como um filme “feminista” da diretora Dee Rees (Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi) e outro com Anjelica Huston, Crabtree se alegra ao ver que seus figurinos “criaram vida própria”. A marca de lingerie Yandy, que passou a comercializar uma versão provocativa do traje, teve que retirá-lo do mercado no final de setembro, em razão da polêmica causada pelo seu significado original. E até a estrela de reality show Kim Kardashian adaptou o figurino, muito mais sexy do que a versão original.

Ane Crabtree ri dessas versões que distorcem o espírito de seu traje. “As pessoas se vestem como querem. Sou  purista. Todo artista quer ver as coisas como as concebeu. Mas tudo isso é apenas ego, talvez tenhamos que deixar as pessoas fazerem o que quiserem”.

MAIS SOBRE SERIES-E-TV