'Clash', do cineasta egípcio Mohamed Diab entra em cartaz em Belo Horizonte

O filme registra de dentro de uma van a convulsão política que se seguiu ao golpe militar que derrubou o presidente Mohamed Morsi em 2013

por Mariana Peixoto 07/05/2017 10:00
 IMOVISION/DIVULGAÇÃO
Cena de Clash, filmado numa van; diretor ensaiou durante um ano num espaço com as mesmas dimensões (foto: IMOVISION/DIVULGAÇÃO)

Em 2013, o presidente do Egito, Mohamed Morsi, foi deposto por um golpe militar. Nos dias subsequentes à queda do líder eleito – integrante de um partido islâmico, a Irmandade Muçulmana –, o país viveu uma gigantesca onda de protestos. De um lado, os simpatizantes da Irmandade Muçulmana. Do outro, apoiadores dos militares.


É com esse pano de fundo que o cineasta egípcio Mohamed Diab filmou Clash, em cartaz em Belo Horizonte (confira salas e horários na página 4). O cenário é algo peculiar: dentro de uma van, para onde são levados aqueles que os militares acreditam ser simpatizantes da Irmandade Muçulmana.

Com uma só câmera, e num espaço exíguo (4 x 2 metros), Diab filmou um jornalista e um fotógrafo da Associated Press (os primeiros a serem presos), uma família com uma criança, um idoso que estava à procura do filho e muitas outras pessoas. Sua intenção é colocar ali representantes da sociedade egípcia. Para realizar seu intento, o cineasta ensaiou durante um ano o filme, dentro de um galpão de madeira que tinha as mesmas dimensões da van.

O cineasta Mohamed Diab recebeu uma carta de apoio de Tom Hanks, que ajudou no lançamento do filme em seu país
Clash, que abriu a mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes no ano passado, causou alvoroço no Egito. Também repercutiu bem no mundo ocidental. Diab, muito perseguido, chegou a receber uma carta de apoio do ator norte-americano Tom Hanks, como ele relata na entrevista ao Estado de Minas.

O cenário de seu filme, uma van, não é nada usual. Quais foram as dificuldades das filmagens no Cairo?
Como tivemos vários problemas durante a produção, criamos nossa própria van. Todas as tomadas foram feitas de dentro dela. Mas, como a câmera estava dentro, quem estava de fora não poderia ver que aquilo era uma filmagem. Tivemos muito medo de que as pessoas não entendessem o que estava ocorrendo. Em algum momento, isso realmente ocorreu, e houve gente que entrou no meio das filmagens. Também houve ataques por parte da polícia.

Você acredita que filmes como o seu podem ajudar a nós, do Ocidente, a entender o conflito?
Claro, ainda mais porque Clash é como uma cápsula de todo o mundo. No filme, compreendemos não somente o que ocorreu no Egito, mas também quem está contra quem, porque existe o conflito, as origens da violência. Dá para saber, inclusive, como se deu a ascensão do Estado Islâmico. No final do filme, há uma insinuação sobre o grupo, quando um personagem pergunta ao outro se ele iria para a Síria. E na época da história, 2013, o Estado Islâmico não era o que se tornou.

Que poder o cinema tem de influenciar as pessoas?

O cinema é imenso. Estou falando com você em inglês com sotaque americano tirado dos filmes americanos que assisti. Antes de ser um diretor, eu era um escritor. O que queria era tentar ver o mundo pelo olhar dos personagens que criava. Escrevi sobre assassinos, criminosos, boas e más pessoas. Pela primeira vez na minha vida, eu me coloquei no lugar daquelas pessoas. Em 2011, lancei um filme sobre assédio sexual (Cairo 678). Quando ele foi lançado, o modo que as pessoas viam o assédio mudou no Egito. Pela primeira vez, vi o quanto o cinema pode mudar as pessoas.

Que liberdade você tem para ser um cineasta no Egito?

Todo mundo tem evitado falar de política. É tudo muito difícil. Fiz este filme não para criticar o regime ou qualquer outra coisa, mas para falar sobre coexistência. Quis mostrar que cada lado tem seus prós e contras e que temos que ver o lado humano de cada um. O governo não viu isso. Fui chamado de espião na televisão, tentaram parar a produção do filme. Foi uma reação muito histérica.

Como foi a recepção de Clash quando ele chegou aos cinemas de seu país?
Ele foi lançado em agosto do ano passado. Houve muito apoio e também muito ataque de cada um dos lados. Ninguém entendeu que eu estava humanizando cada um. Estavam achando que eu humanizava apenas aqueles que consideravam seu inimigo. Uma semana antes de o filme chegar aos cinemas, meu distribuidor recebeu um telefonema e desistiu do filme. Ou seja, eu o lancei sem um distribuidor. Tive sorte, porque o Tom Hanks me mandou uma carta dizendo o quanto havia gostado de Clash. Postei a carta dizendo que o mundo estava dando suporte ao filme, mas que, no Egito, ele estava sendo estrangulado. Por conta disso, recebi muito apoio. Na primeira semana, Clash foi o filme mais visto do Egito.

A CRISE NO EGITO


Fevereiro de 2011 – Após 30 anos de governo autoritário, 18 dias de protestos massivos paralisam o país e forçam o presidente Hosni Mubarak a renunciar. Uma junta militar assume o poder e condena Mubarak por ordenar a repressão que matou mais de 800 e feriu cerca de 6,4 mil opositores.

 

Abril a dezembro de 2011 – Protestos contínuos na Praça Tahir, no Cairo, com frequentes episódios de violência entre militares e manifestantes.

Dezembro de 2011
– O primeiro-ministro provisório Kamal al-Ganzouri assume o governo e prepara o país para eleições parlamentares que ocorrem em janeiro de 2012, com vitória da histórica oposição islâmica.

Junho de 2012 – Mohamed Morsi, do principal partido de oposição, a Irmandade Muçulmana, é eleito presidente. Ao assumir, inicia o desmantelamento da estrutura de comando do governo de Mubarak, constituído basicamente por membros das Forças Armadas.

Novembro de 2012 – Morsi e o Parlamento dão início à elaboração de uma nova Constituição. A pressão de Morsi para conferir um caráter islâmico à Carta faz com que vários constituintes abandonem o processo e protestos voltam a tomar conta das ruas, agora divididas entre liberais frustrados com a postura radicalmente islâmica do governo e defensores de Morsi. O país racha.

Dezembro de 2012 – Com baixa participação popular, um referendo sobre a Constituição, de caráter islâmico, é aprovado. A economia entra em crise.

Janeiro a julho de 2013 – Protestos contra o governo crescem, com vários episódios de confrontos e violência.

Julho de 2013 – As Forças Armadas dão um ultimato ao governo e à oposição para resolver a disputa.
Diante do impasse, promovem um golpe militar, suspendem a Constituição e o presidente da Suprema Corte, Adly Mansour, assume como presidente interino com apoio dos militares. Nos dias seguintes ao golpe, os massivos protestos são reprimidos com violência e centenas de mortes.

Dezembro de 2013 – O governo declara a Irmandade Muçulmana um grupo terrorista após um ataque à bomba atribuído ao partido.

Janeiro de 2014 – A nova Constituição, elaborada por um comitê de 10 “especialistas”, é aprovada em referendo com baixa participação popular. A Carta bane partidos baseados em religiões e estabelece prazo para eleições.

Maio de 2014 – Abdul Fattah al-Sisi, chefe das Forças Armadas desde a era Mubarak, é eleito com 96,91% dos votos. A oposição questiona a legitimidade do pleito, que é rapidamente endossado pela comunidade internacional.

Abril de 2015 – O ex-presidente Morsi é julgado e condenado a 20 anos de prisão, como responsável pela repressão a protestos em torno do Palácio Presidencial, em 2012, que resultou em morte de manifestantes .

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