Coronavírus: O mito de Babel e a contemporaneidade

Todos nós estamos sendo assolados por um grande mal: a confusão advinda do desencontro da comunicação

GUILLAUME SOUVANT / AFP
Paciente se submete a exame para detectar COVID-19 (foto: GUILLAUME SOUVANT / AFP)

Resolvi escrever sobre esse tema, depois de tentar responder à seguinte pergunta: 

- De qual mal estão mais sofrendo meus pacientes durante a atual pandemia?

Algumas possíveis resposta me vieram à cabeça como a solidão, o medo da doença, os problemas de saúde habituais e a comunicação ou o desencontro dessa. Percebi então, que o sofrimento tem várias origens, mas, sem dúvidas, é bem pior sofrer de solidão e de doença em uma torre de Babel, do que na torre de Pisa. 

O mito da torre de Babel diz que depois do dilúvio, os descendentes de Noé resolveram viver juntos em uma cidade no Oriente e construíram a torre de Babel. A torre era alta, pois a intenção deles era alcançar o céu. Viviam ali em harmonia e falavam todos a mesma língua, até que a torre foi destruída por forças celestiais, em resposta à soberba dos homens. A partir desse momento, os povos se espalharam, cada um falando e entendendo uma única língua. A intenção divina havia sido deixar os mortais confusos e isso aconteceu como consequência do desencontro da comunicação. 

Sim. Meus pacientes e todos nós estamos sendo assolados por um grande mal: a confusão advinda do desencontro da comunicação. Nossa Babel, que já vinha abalada, parece ter finalmente vindo ao chão. 

Acabamos de começar o segundo semestre de 2020 e continuamos cada vez mais envolvidos em incertezas, quando pensamos no novo Coronavírus.  Existem incertezas relacionadas à própria COVID-19 e outras se devem aos desencontros, frutos do desespero do momento. Não sabemos, por exemplo, quando haverá uma vacina eficaz e segura, não sabemos se a imunidade de quem já contraiu a doença é adequada e duradoura e, como se não bastasse, não sabemos em quem acreditar.

Muitos já não acreditam na Organização Mundial da Saúde (OMS) e o nosso Ministério da Saúde está longe de ser um ponto consensual. Para muitos, o caminho a seguir é o de seus aliados políticos:  Me digas em quem tu votas, que lhe direi qual caminho seguir. Para outros, a verdade depende de sua fonte de renda. Alguns acreditam mais ou menos na gravidade da doença e na eficácia do tratamento, guiados por seu interesse pessoal, conscientes ou não desse fato. 
Para os médicos, o consenso só vai até a anamnese e exame físico, a partir daí, um abismo se abre.
 
Alguns acreditam no dito “tratamento precoce”,à base de medicamentos sem evidências científicas suficientes que justifiquem seu uso para o SARSCOV-2. Esses médicos, bem intencionados, optam por fazer alguma coisa mais concreta do que o tratamento suportivo, preferem tentar e acreditam que as evidências ainda virão. Esses colegas, em sua maioria estão envolvidos na linha de frente dessa pandemia e temem deixar sem tratamento quem poderia ser salvo. Considero essa intenção louvável. 

Outros colegas, convictos seguidores da Medicina Baseada em evidências, se mantêm fiéis em defesa da ciência e também de um dos grandes princípios da bioética: Primum non nocere (primeiro não faça mal). Segundo esse princípio, nós, médicos, deveríamos, na dúvida, não agir. Essa linha de atuação é também fácil de ser compreendida principalmente quando pensamos nos pacientes idosos e frágeis, que sofrem mais os malefícios dos efeitos adversos dos medicamentos. Como não se render à bioética? 

Diante de tantas dúvidas, como manter a calma e a esperança? 
Precisamos, em primeiro lugar, nos cuidar e cuidar dos nossos, da melhor forma possível. A prevenção não pode ser menosprezada ou substituída por medidas duvidosas. Em segundo lugar, é importante sabermos esperar, certamente o tempo transformará diversas dúvidas em verdades. Por fim, sejamos mais compreensivos e respeitosos com os outros. Isso evitará desgastes e sofrimentos desnecessários para todos. 

Como disse Nelson Rodrigues, “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade, não precisa pensar.” Sigamos em companhia da paz!

Tem alguma dúvida ou gostaria de sugerir um tema? Escreva para mim: julianacicuz@gmail.com