Impactos da pandemia de coronavírus no aumento da mortalidade por câncer

Autoridades, especialistas em saúde e população precisam se mobilizar para reduzir os impactos da atual crise global na saúde pública

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É essencial manter consultas e exames médicos em dia, desde respeitados os cuidados sanitários contra a COVID-19 (foto: Wikimedia Commons)

A pandemia de Sars-Cov-2 (coronavírus) tem um impacto imediato e inquestionável: as mais de 1 milhão de vidas perdidas, número que deve aumentar diariamente até que se encontre uma resposta imunológica duradoura.

Porém, de forma ampla, a repercussão final na saúde só poderá ser definida em longo prazo, apesar de já termos dados iniciais demonstrando que serão consequências desastrosas.

Falo especialmente em como a pandemia vem impossibilitando o acesso à prevenção, ao diagnóstico e ao controle de inúmeras doenças graves, o que, irremediavelmente, causará maior mortalidade por outras enfermidades nos próximos meses e anos.

Um estudo publicado no periódico Lancet Global Health e assinado por pesquisadores do Conselho de Pesquisa Médica do Centro para Análise de Doenças Infecciosas Globais, do Instituto Abdul Latif Jameel e do Imperial College de Londres, por exemplo, aponta números assustadores relacionados a doenças que já devastavam países subdesenvolvidos.

Por meio de modelos matemáticos, os investigadores identificaram, na hipótese de um pior cenário, um aumento de 10% em número de óbitos pela Aids; 20% por tuberculose e 36% por malária nos próximos cinco anos. Em 2018, na normalidade anterior à pandemia, mais de 770 mil pessoas morreram de doenças relacionadas à Aids em todo o mundo.

Na área oncológica, onde já são registrados cerca de 10 milhões de mortes anualmente no globo, estudiosos se dedicam a analisar como a pandemia está repercutindo na redução das ações preventivas, paralisação de tratamentos, aumento do diagnóstico tardio e mortalidade, além do adiamento na condução de pesquisas clínicas para desenvolvimento de novos medicamentos.

Uma das pesquisas, publicada na revista científica JAMA, aponta que nos primeiros meses da pandemia houve um declínio de 75% nos encaminhamentos por suspeita de câncer. A Holanda observou uma queda de até 40% na incidência semanal de câncer e o Reino Unido teve redução de 75% nos encaminhamentos também.

Outro estudo, assinado por pesquisadores do Sidney Kimmel Cancer Center, na Filadélfia, e do National Health Service (NHS), do Reino Unido, mostra redução de 89,2% no rastreamento de câncer de mama e de 85,5% dos exames de investigação de câncer colorretal, como colonoscopia. Os dados foram obtidos a partir dos registros de 278 mil pacientes, dentre eles mais de 20 mil do período de COVID-19. A pesquisa foi publicada no JCO Clinical Cancer Informatics, revista científica da American Society of Clinical Oncology (ASCO).

No Brasil, o levantamento da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP) mostrou que ao menos 70 mil brasileiros deixaram de receber o diagnóstico de câncer nos quatro primeiros meses de pandemia. Acredito que esse número já tenha praticamente triplicado. Por sua vez, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) identificou redução de 70% no número de cirurgias de câncer no mesmo período.

E relacionado ao câncer de mama, tipo mais comum entre as mulheres no mundo e no Brasil, dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Câncer de Mama, mostram redução de 67% na realização de mamografias em mulheres brasileiras, entre 50 e 69 anos, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de janeiro a junho de 2020, em comparação ao mesmo período de 2019. 

Em Minas Gerais, os dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES) apontam o registro de apenas 1.324 casos, entre janeiro e julho deste ano, enquanto durante todo o ano de 2019 foram confirmados 5.455 novos casos desse tipo de câncer. E não se enganem, não se trata de redução real dos casos, mas do não diagnóstico, o que terá consequências trágicas para boa parte dessas mulheres.

Outro fator relacionado ao câncer feminino, neste caso o de colo do útero, foi a redução do alcance das campanhas de prevenção, como vacinação e rastreamento do papilomavírus humano (HPV), especialmente em países em desenvolvimento. 

Do ponto de vista do tratamento, em pesquisa online realizada pelo Instituto Oncoguia line com pacientes oncológicos e seus familiares, 43% dos participantes relataram que seus tratamentos foram impactados neste período.

Por sua vez, o artigo de Karine Marques Corrêa, Júlia Damasceno Borges de Oliveira e Gunnar Glauco de Cunto Carelli Taets, publicado na Revista Brasileira de Cancerologia, aponta, além dos fatores biológicos, consequências mais subjetivas na qualidade de vida de pacientes com câncer, sendo eles os impactos psicológicos, sociais e espirituais. Do ponto de vista biológico, as pesquisadoras consideram, assertivamente, a alteração nos hábitos alimentares durante o período de isolamento social e a redução da prática de exercícios físicos.

Apesar da redução de casos de COVID-19 observada nas últimas semanas, inclusive no Brasil, os novos surtos em países que já tinham sua curva controlada, e a imprevisibilidade de quando teremos uma vacina, nos fazem entender a importância de encontrar saídas para que a saúde da população seja preservada também em relação à prevenção de outras doenças. Inúmeras instituições médicas têm apostado em opções como a telemedicina, que sabemos, não está disponível, por exemplo, nos rincões do país, tão pouco na saúde pública.

Por outro lado, sabemos que é possível manter as consultas e exames médicos em dia, desde que sejam respeitados os cuidados sanitários contra o coronavírus. Evitemos as aglomerações e saídas desnecessárias, mantendo sempre o uso da máscara e higiene constante das mãos.

Esse é um momento em que autoridades governamentais, especialistas em saúde e população em geral precisam se mobilizar para reduzir os impactos da atual crise global na saúde pública.

*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada e diretor Científico no Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão: GBOP. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.

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