O câncer de pulmão pode ser hereditário? Entenda

A incógnita do surgimento desses tumores em pessoas que não foram expostas a fatores de risco como tabagismo e gás radônio pode ter sido resolvida em estudo recente

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hereditariedade no câncer de pulmão sempre foi uma incógnita (foto: Pixabay)

Casos familiares de câncer de pulmão sempre intrigaram aos médicos, especialmente a nós oncogeneticistas. Não é incomum identificarmos mais de um caso de câncer de pulmão em parentes de uma mesma família, em geral, em idade abaixo dos 55 anos e, para os quais, as causas mais comuns de câncer de pulmão – o tabagismo ativo e passivo – não podem ser identificadas. Nesses casos, a predominância é de ocorrência em mulheres e o tipo tumoral mais comumente descrito é o adenocarcinoma.

Aí, sempre nos vem o questionamento: o que teria causado nestas pessoas o câncer de pulmão? Elas nunca fumaram e nem conviveram com fumantes. Sabemos que a exposição prolongada ao gás radônio também é um fator de risco a ser considerado. O radônio é um gás radioativo liberado durante o decaimento natural de tório e urano. Temos no Brasil um solo rico em tório e urano em vários locais e este fato pode concorrer para o aumento da incidência de câncer de pulmão.

Entretanto, em vários casos de câncer de pulmão em membros consanguíneos de uma mesma família, não conseguimos estabelecer uma relação causal, pois os mesmos não vivem em áreas de alta exposição ao gás.

Durante décadas convivemos com esta dúvida atroz. Pelo fato de muitas vezes identificarmos mais de um consanguíneo, e em geral de parentesco próximo, com o mesmo diagnóstico, a suposição senso comum entre nós especialistas e que poderia se tratar de uma predisposição hereditária a este câncer, como ocorre em vários outros cânceres para os quais os genes responsáveis foram devidamente identificados e, hoje, podem ser avaliados por meio de testes genéticos sofisticados.

Como exemplos podemos citar as síndromes de predisposição a cânceres de mama e ovário (causadas principalmente por mutações herdadas ou germinativas dos genes BRCA 1 e 2); a síndrome de predisposição a cânceres de intestino, corpo uterino e vários outros órgãos dos tratos digestivo e urinário, a chamada Síndrome de Lynch (mutações herdadas dos genes MLH1, MSH2, PMS2, MSH6 e EPCAM);  e também a Síndrome de Li-Fraumeni, causada pela mutação herdada do gene TP53 e que causa vários tipos de câncer, como mama, sarcomas, tumores cerebrais e vários outros.
 
Suspeita-se de uma síndrome hereditária de predisposição ao câncer quando o mesmo ocorre em idade mais  jovem que o habitual (em geral abaixo dos 55 anos) e em vários parentes próximos de uma mesma família, através de gerações (o que chamamos de transmissão mendeliana).

Ocorre que, até pouco tempo atrás, nenhum gene responsável, de forma inequívoca, pelo aumento de incidência do câncer de pulmão havia sido descrito ou identificado. Entretanto, recentemente um consórcio internacional de pesquisadores identificou uma mutação envolvida na suscetibilidade de uma pessoa ao câncer de pulmão.
 
A variante encontrada pode ajudar a identificar determinadas populações com maior risco de câncer de pulmão, de acordo com os resultados relatados por Ji Xuemei e colaboradores neste estudo considerado esclarecedor, publicado na prestigiada revista médica Nature Communications.

Os esforços combinados da equipe identificaram uma variante genética que altera a sequência de proteínas do gene ATM (variante ATM L2307F- rs56009889). Esse gene é conhecido por causar uma doença genética que cursa com ataxia (perda ou irregularidade da coordenação muscular) e telangiectasia (pequenos vasos sanguíneos dilatados na pele ou nas mucosas, em qualquer lugar do corpo) -  daí as iniciais ATM, sendo M de mutação.

O gene ATM está envolvido na reparação de danos no DNA e sua mutação também é implicada em uma síndrome de predisposição hereditária ao câncer (usualmente câncer de mama), mas a suscetibilidade ao câncer de pulmão nunca foi claramente reconhecida como parte de seus efeitos até que essa variante genética foi identificada.

Como a pesquisa envolveu estudos de países em todo o mundo, os pesquisadores foram capazes de rastrear as origens populacionais dessa variante.  Ela foi encontrada quase exclusivamente em indivíduos decentes judeus Ashkenazi. O fato de a variante ser encontrada principalmente em uma população é consistente com algo que os geneticistas chamam de efeito fundador.

As variantes de efeito fundador são usadas nos programas de rastreamento do câncer de mama, particularmente nas populações judaicas asquenazes. Essa variante ATM tem uma prevalência semelhante a aquelas. Os pesquisadores descobriram que ela está relacionada à predisposição de câncer de pulmão em pacientes sem histórico de tabagismo, em geral mulheres e com um subtipo específico de câncer pulmonar: o adenocarcinoma.

Houve grande progresso nas técnicas de triagem de câncer de pulmão nos últimos anos, como o rastreamento periódico com o uso da tomografia de tórax em cortes finos com pequenas doses de irradiação, que comprovadamente, consegue detectar câncer de pulmão em estágio muito precoce em fumantes, propiciando assim a oportunidade para um tratamento cirúrgico precoce e potencialmente curativo.

Portanto, essa descoberta pode ser realmente útil para a triagem de pulmão direcionada, uma vez que portadores dessa mutação também podem ser submetidos a esta tomografia de rastreamento periódica e em idade precoce (sugestão de se iniciar o rastreamento a partir dos 25 anos de idade).

Compreender os processos biológicos nos quais essa variante ATM atua também pode levar a novas opções terapêuticas, uma vez que identifiquemos drogas que atuem especificamente em células que apresentem esta mutação.

Essa fascinante descoberta nos faz considerar fortemente a necessidade da pesquisa genética desta variante quando se suspeitar de uma síndrome hereditária de predisposição a câncer de pulmão. A identificação correta, por sua vez, vai propiciar um rastreamento mais precoce e preciso do câncer de pulmão, para que, então, um tratamento cirúrgico precoce e mais curativo possa ser indicado.

*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.

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