Hino à liberdade ameaçada

"Aliviai, Senhor, o peso da cruz sobre os nossos ombros, para que em cada estação surja um Cirineu para nos ajudar a seguir em frente"

por Déa Januzzi 18/03/2019 19:29

Livrai-nos, Senhor, da morte diária dos nossos sonhos; enterrai, de vez, a falta de entusiasmo, o martírio de viver cada dia como se fosse um calvário. Livrai-nos, Senhor, de todos os males e das pedras no caminho que nos fazem tropeçar na mediocridade e na mesmice das coisas. Enterrai para sempre, Senhor, a falta de compaixão. Livrai-nos das chagas da intolerância, da injustiça e da prepotência que se abrem diante dos nossos olhos, sem que encontremos o bálsamo para cicatrizá-las.


Livrai-nos, Senhor, dos entulhos do coração para deixá-lo mais leve e livre para amar indistintamente. Tirai as cinzas não só das quartas-feiras, mas de todos os dias de chumbo e de trevas que, porventura, surgirem em nosso caminho.


Aliviai, Senhor, o peso da cruz sobre os nossos ombros, para que em cada estação surja um Cirineu para nos ajudar a seguir em frente. Que as Marias Madalenas parem de expiar a culpa da humanidade. Dai a Madalena, Senhor, um lugar de destaque e de redenção. Curai as feridas de todas as Madalenas. Expurgai, Senhor, o preconceito, o ódio, o cansaço e a solidão. Não deixe que continuem apedrejando, açoitando o feminino que há em cada uma de nós. Acabe, Senhor, com essa caçada às mulheres.


A partir de hoje, Senhor, estendei os tapetes de glória, com as cores da ressurreição, desde a leveza dos tons claros até a densidade dos púrpuras e vermelhos. Estendei, Senhor, a serragem colorida pelas avenidas da nossa alma. Deixai-nos com essa sensação de ressurgir do nada, de reerguer sobre os escombros da insegurança.


Dai-nos, Senhor, o milagre do pão e do vinho, para que o prazer esteja sempre à nossa mesa, com a mesma fartura e o sentido de um ritual. Ressuscitai, Senhor, a esperança nossa de cada dia, a alegria de acordar e de dormir sem sobressaltos. Que os pesadelos não nos despertem do sono, que a consciência amanheça conosco e siga em frente sem terrores noturnos.


Dai-nos, Senhor, a possibilidade de recomeçar, de dar a volta por cima, de renascer em meio ao caos. Livrai-nos do sepulcro, arrancai os espinhos da dor. Tirai, Senhor, a mordaça que querem impor às cabeças pensantes. Não expulsai os artífes do belo. Tenha misericórdia desse país à beira da convulsão social. Sepultai os discursos de ódio. Bendizei, Senhor, as flores que acabam de nascer nos lugares mais secretos do nosso ser.


Regai, Senhor, por um jardim das oportunidades para os jovens que vivem hoje como zumbis, sem projetos de vida. Acendei, Senhor, a tocha nos corações perdidos na noite, enferrujados de medo, aprisionados de dúvidas. Curai as nossas feridas antigas e as atuais que ainda não cicatrizaram – e as que ainda vão se abrir dentro do nosso peito.


Perfumai, Senhor, as nossas casas com o cheiro da comida das avós. Acendei um fogão a lenha em nossas lembranças mais profundas, onde só cabem os almoços de domingo, a família reunida e o afeto servido em forma de aconchego, risadas e conversas, para lambuzar bocas e mãos, para seduzir as crianças e embriagar os mais velhos.


Estancai, Senhor, essa hemorragia de mentiras e de insanidade, esse jeito velho de ser, de pensar e de fazer, protegido pelo discurso do novo. Acabai com a tortura de um mundo sem esperança, com os fantasmas do apocalipse. Dai-nos a paz, Senhor. Iluminai o caminho dos desamparados, dos deprimidos, dos que estão sofrendo de amor, dos aflitos, dos desiludidos, dos que não creem em mais nada. Acendei, Senhor, a luz de melhores dias. Colocai holofotes sobre as trevas que insistem em esconder o lixo debaixo do tapete.


Preciso pedir, Senhor: com os jardins de ervas daninhas e a dor dos jovens que crescem num terreno nada fértil; com os acordes de Vivaldi e o meu passado perdido; com o ensurdecedor silêncio da madrugada e a minha morada sempre provisória; com todos os sonhos que estão se desmanchando na lama cuspida pelas mineradoras, com o decreto de dias menos cruéis, com os trovões que lembram o som de tambores, com as velas acesas da compaixão e a esperança que insiste em nascer nos meus braços. Piedade!


Deixai, Senhor, que eu seja feliz escrevendo, ouvindo música, vendo Seu rosto na natureza à minha volta, na flor de lótus que nasce no meio da lama, no canto dos pássaros que livrei das gaiolas, dos grilos que sobem e descem na parede, sob o olhar atento de Mel, a cachorra que adotei e que hoje é minha companheira de todas as horas, eu rogo piedade, Senhor, piedade!

Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente