Coração de mãe: Nas rédeas do tempo

"Será que vão me internar em um manicômio por minhas ideias contrárias ao pensamento esquizofrênico que tomou conta desse país?"

por Déa Januzzi 18/02/2019 12:00
Ilustração/EM
(foto: Ilustração/EM)

Será que vai dar tempo de chegar ao Bairro Santo Antônio, em BH, para abraçar Renée de Lima Viana, que acaba de fazer 105 anos? Tomara que meus braços sejam asas para abrigar tanta história. Ela é uma velha amiga de minha mãe, que partiu há 10 anos.

Será que vai dar tempo de conversar com Renée, aquelas longas conversas, sem hora para terminar, pois tempo de relógio não conta para os mais velhos. Eles fazem o próprio tempo. Com eles, é olho no olho, conversa séria de coruja e não de maritaca. Nada de ficar gralhando preconceito, retrocesso. Eles conseguiram o que muitos não estão conseguindo: envelhecer.

Se pudesse encontrar Renée para um chá com biscoitos amanteigados, gostaria de saber, por exemplo, como chegar aos 105 anos, mesmo que a vida não tenha sido sempre um mar de rosas, mesmo depois de perder três dos cinco filhos, além de duas netas e um bisneto? Depois de ter vivido problemas sérios e complicados com a família? Como é fazer 105 anos sendo homenageada pela Associação dos Empregados Aposentados da Caixa Econômica de Minas Gerais, por ter sido a primeira pensionista do banco? Como é ter energia de dizer ao garçom que não quer água, mas cerveja? De saber que, hoje, Marilena, de 81, e Roberto, de 76, deixaram suas casas e alugaram um apartamento para dar assistência contínua à mãe?

Apesar dos primeiros vacilos de memória, Renée continua senhora do tempo, chama a filha Marilena de menina, arruma a mala todo dia para voltar a Itaúna, sua cidade natal, “porque minha mãe deve estar preocupada. Saí só para passar uns dias e já tem muito tempo que estou aqui”. Os filhos não desmentem Renée, não dizem que a mãe dela morreu, deixam que arrume a mala quantas vezes quiser. Renée não sabe que, na velhice, não há mais volta para casa. Mesmo assim, Marilena penteia os cabelos da mãe, faz sobrancelhas. Ela fica pronta para mais um dia, para o que der e vier. Se Marilena não atende ao pedido, Renée protesta: “Vou sozinha, não preciso de você para nada.”

Renée não sabe o que é Facebook nem celular, não vê as trágicas notícias na tevê de um país que perdeu os remos do barco, que está navegando à deriva. Até os 103 anos, ela me reconhecia, sabia de quem eu era filha, mas, hoje, sente aflição ao conversar por telefone. “Vem cá”, diz ela, “vem me visitar”, porque conversa ao telefone também cansa quem vive há 105 anos e já viu coisas do arco da velha. Notícia ruim engole anos de vida. Hoje, ela quer é dançar com todo mundo que está no almoço do clube dos aposentados, só gosta de programas de humor. Não vê novelas nem notícias ruins. Ainda bem, porque não duraria nem cinco minutos a mais de vida se entendesse o que está por trás de todas as tragédias desses primeiros meses de 2019. Ainda bem que Renée hoje olha para o espelho e diz: “Tem uma ruga que apareceu no meu rosto, mas que não deveria estar aqui.” E que, ao sair da festa em sua homenagem, se despede dos ocupantes da mesa dizendo: “No ano que vem estaremos aqui, no mesmo horário e local.” Ainda bem que Renée, aos 105 anos, ainda faz planos para o amanhã.

Mas será que vai dar tempo de parar de fumar? Não, de tomar vinho nunca vou parar. Já pedi ao meu filho que todos devem tomar vinho no meu derradeiro dia e, como Jane Fonda no filme E se fôssemos morar todos juntos, que não olhem para trás, e deixem as taças nas bordas de uma urna funerária (ou caixão?) forrado e encapado com letras, muitas letras, porque foram elas que me conduziram pelos caminhos intrincados da alma e da emoção. Ou seria melhor não ter escolhido um caminho tão tortuoso, cheio de pedras e tropeços? Queria também escutar, pela última vez, a música Rain dogs, de Tom Waitts, ou uma das tantas de Adriana Calcanhoto. Pode ser aquela que diz assim “Vou arranhar os seus discos…”. E alguma de Zeca Baleiro, de Chico, Caetano e Gil, por favor. Não matem os meus ídolos antes do tempo, não os torturem na fogueira da inquisição de desgovernos. Será que vai dar tempo de falar do meu próprio envelhecer? De mostrar que ser velho hoje é “a coisa mais moderna que existe”, como canta Arnaldo Antunes? Mas, por favor, sem glamourizar demais a velhice. Não tenho mais tempo nem disposição para voar de asa delta, de ser triatleta nem de subir o Monte Everest aos 70 anos. Será que vai dar tempo de envelhecer? Pois a velhice cansa – e como cansa.

Será que vai dar tempo de me encontrar mais vezes, por acaso, com o índio Aílton Krenak, de ficar sentada com ele em um café da Serra do Cipó e pensar sobre a resposta para uma simples pergunta: “Oi, tudo bem?” Krenak fica em silêncio por alguns minutos e responde: “Na situação acachapante que estamos vivendo neste país, onde as desgraças se encaixam, perguntar se uma pessoa vai bem pode ser uma provocação. É como se você estivesse cutucando o outro com vara curta. Só um cínico pode dizer, ah, tudo bem! Ou, então, um desses fundamentalistas idiotas, que acham que Deus vai resolver tudo e que os humanos podem fazer essa merda toda. Que Deus depois vem e limpa tudo. Afinal, Deus é o lixeiro, o gari desse troço. Que Deus vem com uma carroça e uma pá limpando tudo. É o que eles acham”, ele fala e me deixa sem voz.

Será que vai dar tempo de espantar a melancolia do meu filho, que está cansado de ver e de viver tantos percalços, de sentir que esse país não tem mais jeito, não tem lugar para ninguém mais? Será que vai dar tempo de curtir os meus netos que ainda nem vieram? Ou que não terá lugar para eles nesse mundo insano? Será que vai dar tempo de correr de quem quer dar eletrochoque na minha loucura, se ela é o que tenho de melhor? Será que vão me internar em um manicômio por minhas ideias contrárias ao pensamento esquizofrênico que tomou conta desse país?

Será que vai dar tempo de reencontrar os poucos amigos que ainda tenho? Será que vai dar tempo de procurar novos irmãos pela vida? Será que vai dar tempo de conversar e reencontrar Mara Rúbia, uma antiga leitora, que veio ao meu encontro para me conhecer pessoalmente, anos depois de uma crônica dedicada a ela? Será que vou conseguir compartilhar com Mara Rúbia a dor que ela sente até hoje pela morte do filho de 10 anos e que nunca a abandonou, apesar do tempo ter passado? Só as mães podem saber o abismo que é perder um filho. Preciso também me apressar para agradecer a Mary Arantes por ter sido a madrinha desse encontro com Mara Rúbia e de ter oferecido às duas fatias do bolo em forma de coração com raspas de mexerica.

Será que vai dar tempo de separar um tempo para conversar com Irmão Mesquita, salesiano, amigo e fonte de matérias especiais por muitos e muitos anos? Irmão Mesquita também está envelhecendo, passou dos 80 e vive pedindo um encontro sem hora para terminar.

Será que vai dar tempo de mostrar a minha gratidão ao médico Flávio Aluízio Xavier Cançado, que cuidou de minha mãe até que ela partisse e continua me atendendo, conversando comigo e oferecendo o melhor tratamento do mundo, que é afeto em doses certas, mesmo a distância? De ficar na varanda da casa no Bairro Mangabeiras conversando com ele e a mulher, Vitória? Tomara que ainda dê tempo.

Será que vai dar tempo de desfazer todas as minhas caixas da mudança que continuam empilhadas? Ou já deixo todas do mesmo jeito para o próximo endereço? Será que vai dar tempo?

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente