No lugar de comprar presentes de Natal, pessoas estão personalizando e até criando lembranças

Movimento ressignifica a simbologia da data

por Laura Valente 18/12/2018 14:00
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Com Regina, a professora Marcela Melo e Lúcia, Cristiana Moura (blusa amarela) começou a fazer aulas de bordados recentemente e já prepara mimos para oferecer aos amigos (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Entra dezembro, e a rotina se repete como de praxe: fazer lista de presentes, determinar um orçamento para cada um, sair às compras, enlouquecer com preços e filas. Afinal, como manda a tradição, todos esperam a troca de lembranças no dia 24 e, para a maioria, é impossível fugir à regra.

Mas há, em pleno século 21, exemplo de pessoas interessadas em quebrar o padrão, que nem passam perto dos shoppings lotados, mas buscam personalizar o ato de presentear, numa ação que envolve mais afeto e menos comércio, mais valor e menos dinheiro.

Raridade? Nem tanto. Num giro pela cidade às vésperas do Natal, encontramos gente como a família da jornalista Angélica Appelt: ela, o marido, Ricardo, os três filhos - Pedro, Carolina e Isabela - e os agregados se propuseram a fazer um amigo-oculto diferente, em que cada um vai produzir o presente da pessoa que sorteou. A ideia veio das crianças e promete entrar para a história de todos como uma doce memória afetiva.

Na oficina de presentes manuais promovida pela professora de design de moda e de bordado livre Marcela Melo não é diferente, pois as alunas Cris, Lúcia e Regina também estão criando peças para distribuir afeto na data. Lembrando que cada bordado representa um sentimento diferente, é feito de forma personalizada e direcionado a quem é importante para cada uma delas, sejam crianças, adultos, parentes, amigos ou amores. “Aqui, cada bordado conta uma história”, afirma Marcela.

Sensibilidade

Por falar em história, a da empresária e designer Paula Bondan é daquelas de tocar a alma. Depois de sofrer um susto em um acidente na antevéspera do último Natal, ela quis fazer um ritual diferente e presentear cada sobrinho com um objeto seu, colecionado ao longo da vida e de valor pessoal e afetivo, num gesto de legar a cada um uma lembrança importante e que fosse relacionada à personalidade de cada criança. Uma festa inesquecível para os pequenos.

Sim, é possível também envolver a alma na escolha dos presentes. A seguir, contamos mais da rotina de pessoas que têm pensado a simbologia do presentear de forma original e carregada de sensibilidade, num resgate até mesmo do verdadeiro significado fraternal da data, distribuir amor. A reportagem deseja a você, leitor, um feliz Natal e conexões cada vez mais verdadeiras e repletas de afeto.

Que história de presente é essa
Costume adotado pelos cristãos nasceu há milênios e atravessa o tempo carregado de simbologias. Saiba mais sobre o hábito, que chega ao século 21 renovado

“Só na véspera do Natal, depois de fechar a loja, tinha o costume de subir para a sala de chocolates e pensar nos presentes, que gosto de bolar na hora, refletindo sobre meus afetos. Mas, no ano passado, foi diferente. Levei um choque e, por algum tempo, pensei na morte e em quanto a vida é breve e pode escapar em um segundo.”

Paulo Filgueiras/EM/D.A Press
"O importante é tocar o coração do outro e, para isso, acredito que a escolha é imbuída do sentimento que vem da alma, que tenha sentido e se identifique com o outro%u201D - Paula Bondan, empresária, com os sobrinhos Gabriel, Miguel, Clara e Manuela (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)

O depoimento da designer e empresária Paula Bondan, proprietária da marca Frau Bondan, é forte. E se ali, naquela ocasião, ela já se considerava uma pessoa que sempre procurou distribuir afeto de forma personalizada, “um presente que é a cara da pessoa, até mesmo sem me prender a datas”, o traço ficou ainda mais forte. “Pensei em como temos o hábito de acumular coisas. E também na urgência de falar com pessoas queridas sobre o quanto as amo, o quanto são importantes pra mim. Quando fui pra casa, decidi selecionar objetos que faziam parte da minha vida, da minha memória afetiva, coisas com significado, para presentear cada um dos meus sobrinhos. Coloquei a alma ali e quis que cada um tivesse uma lembrança da personalidade da tia, do meu olhar sobre o mundo e as coisas, daquilo que me encanta. Escrevi dedicatória e um bilhete para cada um, mesmo para o mais novinho, de apenas 3 anos.”

E aquele foi um Natal feliz, repleto de emoção, conta Paula. Tanto que os pequenos Gabriel, de 11 anos, Manuela, de 10, Clara, de 6, e Miguel, de 3, guardam com o maior carinho os presentes daquele dia, que deve ser relembrado ainda durante muito tempo. “Sou mesmo de comprar só o que me encanta, não me obrigo a dar presentes nas datas, mas algo que, quando vejo, me faz lembrar aquela pessoa. Sem clichês e com muito afeto, energia de cura até. Assim penso o presente ideal. E nem precisa ser uma coisa, mas uma experiência, um momento. O importante é tocar o coração do outro e, para isso, acredito que a escolha é imbuída do sentimento que vem da alma, que tenha sentido e se identifique com o outro”, descreve.

COSTUME MILENAR

Maurício Paz, professor de história da Universidade Federal do Paraná e de outras instituições, conta que a data comemorativa cristã do Natal, comemorado em dezembro, foi definida apenas no século 4. “Antes disso, os cristãos primitivos não tinham o hábito da celebração do Natal como conhecemos. Existia, nessa data, uma festa anterior à era cristã, chamada de Natalis Solis Invicti.”

Ele fala sobre a popularidade da festa no Império Romano, a celebração de Solstício de inverno, quando as noites passam a ficar cada vez mais curtas, com o sol predominando por mais tempo e derrotando, assim, o inverno e a escuridão da noite. E destaca que essa mesma festa tem sua origem há mais de 5 mil anos, na Pérsia, com a divindade Mitra, uma deidade relacionada ao Sol.

Trata-se de uma história talhada ao longo de milênios, continua. “Embora o Império Romano fosse oficialmente cristão desde o imperador Constantino e o Edito de Milão, em 313, é preciso entender que as religiões da Antiguidade, consideradas pagãs, não desapareceram e a melhor forma de evitar conflitos religiosos era com as autoridades promovendo a sincretização das crenças. Pois bem, a troca de presentes e decoração de árvores com velas e fitas já era uma prática das celebrações do Natalis Solis Invicti, que acabaram assimiladas pela cristandade.”

OS REIS MAGOS

O professor diz, ainda, ser impossível afirmar se os três reis magos, por exemplo, existiram de fato. “E isso não tem o propósito de se contrapor à fé ou à cultura das pessoas. Na realidade, culturalmente, a festa dos reis magos é o momento de troca de presentes em alguns países, como na França. Embora o costume de presentear os recém-nascidos seja, de fato, milenar, é difícil afirmar com precisão histórica a existência real desses fatos.”

Assim, conclui ele, o hábito de presentear no Natal, tão corrente na cultura ocidental e entre a comunidade católica, atravessou o tempo e varia em cada país. “No Brasil, fomos influenciados pela tradição americana, que movimenta imensamente muito dinheiro nas festas de fim de ano. No entanto, certamente, o Natal nos aproxima, nos acalenta, faz com que antigas mágoas sejam resolvidas, une famílias e amigos, promove um sentimento de perdão, renova esperanças. Por esses motivos, as festas natalinas ainda estão na cultura, elas ajudam cada sujeito a lidar e a resolver esses problemas. Ao longo da história, o Natal representou momentos de ruptura em muitos acontecimentos. Na Idade Média, Moderna e Contemporânea, existem inúmeros relatos de Armistícios em guerra durante o Natal. Mais uma evidência da força desse fenômeno, mesmo no século 21: a sociedade de consumo tende a tornar todas as relações e significados mais efêmeros e pouco importantes diante do consumo. Mas acredito que ainda assim o Natal resguarda o sentido de promover a união familiar e de amigos. De reatar laços e nos reconectar às nossas origens.”

O afeto presente nas artes manuais
Para além de pensar no perfil de quem será presenteado, o fazer a mão é alternativa para expressar sentimentos e personalizar cada lembrança com a característica da exclusividade

Não importa a falta de habilidades para bordar, costurar ou construir o presente dos sonhos. É o que garante quem decidiu partir para a atitude handmade neste Natal. Veja o exemplo da família Appelt: a mãe, Angélica, o pai, Ricardo, e os três filhos – Pedro e as gêmeas Carolina e Isabela, decidiram, em conjunto, transformar a brincadeira do amigo-oculto em uma oportunidade para fugir do comum. No lugar da troca de presentes comerciais, eles mesmos estão produzindo os mimos.

Leandro Couri/EM/D.A Press
Os irmãos Pedro e as gêmeas Carolina e Isabela Appelt estão produzindo lembranças para o amigo-oculto (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Tudo feito a mão, envolvendo criatividade e sentimento. Pedro e a irmã Carol farão desenhos. Já Isabela criou um artesanato decorativo. A mãe vai produzir um enfeite de espuma com uma frase expressando amor e gratidão para a pessoa que sorteou. O pai ainda faz mistério sobre o presente. “A ideia veio da minha irmã, mas todo mundo gostou porque é um presente em que a gente vai colocar nosso amor, feito com nosso carinho, para demonstrar afeto. Farei um desenho e vou escrever algumas frases que tenham a ver com a pessoa”, conta Pedro. Carolina diz que a proposta é também um exercício. “Achei mais legal e, ainda por cima, é uma forma de não gastar dinheiro e de mostrar mais amor. Acredito que será uma troca emocionante.” E Isabela, a autora da ideia, completa: “Conversamos muito aqui e percebemos que as pessoas acabam esquecendo o significado do Natal, querem só comprar e ganhar, em vez de pensar que existe muita gente precisando de ajuda, por exemplo. Por que não fazer diferente? Com certeza, será um Natal especial, haverá mais significado para a nossa troca”, reflete.

TROCA DE ENERGIA

Já adulta, Cristiana Pereira Moura, psicóloga, se deu conta de que o fato de não saber colocar uma linha na agulha estava incomodando. De uma família habilidosa para as manualidades, ela decidiu aprender e, assim, resgatar aquele elo ancestral entre as mulheres, memórias do convívio com a mãe, com as tias, com o feminino e até mesmo com o tempo, que passa devagar durante o bordado. “É um processo muito simbólico”, revela.

Assim, começou a frequentar as aulas de bordado da professora Marcela Melo. Lá, ela e as colegas Lúcia e Regina tiveram a ideia de criar peças para presentear pessoas queridas no Natal. Cris está bordando em folhas naturais – a referência é o trabalho da artista plástica Clarice Borian. Uma das folhas será entregue para a irmã, que mora em outra cidade. “Bordar é uma coisa de avó, mas muito atual e contemporânea. A opção de bordar na folha também é simbólica. Sei que é um presente que não vai durar para sempre, mas toda a minha intenção de pensar em alguém está ali, impressa no cuidado, na atenção desprendida naquele momento.” Cris também fala sobre a troca de energia do estar em grupo, dividindo experiências, alegrias, dores, “uma troca muito especial”.

Do outro lado, a professora se diz feliz com a possibilidade de fazer um movimento de resistência à lógica do consumo. “Sempre levantei essa bandeira, do significado daquilo que é feito e traz um outro valor, o afetivo. Consequentemente, há uma outra conexão entre quem faz e quem recebe. Não há descarte, pois o ciclo do artesanal não se desgasta - tenho peças que foram criadas há mais de 100 anos -, fora que demonstram cuidado com o planeta, a sociedade e as pessoas envolvidas. Cada aluna tem um projeto e todas buscam romper com essa noção que aprendemos do pensar baseado no que a gente tem, na posse, nessa roda frenética do consumismo, das coisas que se desgastam muito rápido. Principalmente nesta época, em que as pessoas ficam enlouquecidas com o comprar, comprar, e nem pensam no valor daquele presente.”

Na oficina e nas aulas de bordado livre, a professora faz questão de difundir a máxima de que o momento de presentear é muito especial e não apenas uma obrigação social, uma rotina. “Acredito no pensar em quem estou presenteando. Ainda que compre produtos comerciais, que seja o que de fato tenha a ver com a pessoa, me lembre alguma coisa dela, gere emoção. Mas, ainda reforço que fazer um presente tem toda uma outra conexão, um valor afetivo. Será algo que tem tudo a ver com você e com o outro, que gera uma outra relação, um carinho, uma troca de afeto, que faz bem para a alma de quem dá e de quem recebe.”

NO TEATRO

Com apresentação que ocorreu nesse domingo, no Memorial Minas Vale, o auto/musical O Natal existe?, da companhia Carroça Teatral, também questiona alguns valores. Com direção de Paulo Henrique de Souza, a peça, montada em dezembro de 2012 e reapresentada desde então, promete gerar reflexão, inclusive entre as crianças. “É uma época do ano muito reflexiva para todos os povos e crenças. Partimos, então, da descrença do ser em relação ao ter: o que somos para ter e o que temos para ser? O que é mais importante, o ter ou o ser?”, questiona.

E completa: “Nossa montagem questiona o dar presente em relação ao ser presente, ainda, em detrimento do sustento da felicidade individual e coletiva. Chegamos à conclusão de que estamos vivendo o frenesi impulsivo do capitalismo (chega a ser selvagem) e clamamos coletivamente pelo filtro da necessidade em relação ao desejo”, alfineta Paulo Henrique.

Guto Muniz/Divulgação
O Natal existe? Peça provoca reflexão sobre o consumismo vazio e a falta de importância dispensada à data e à solidariedade (foto: Guto Muniz/Divulgação )

Entre as principais mensagens da peça, o consumismo vazio é um alvo. “Consumimos para satisfazer o desejo, impulsionados pela propagação de que, se temos algo, então seremos felizes. A partir daí não consumimos porque precisamos, mas, sim, porque estamos “famintos” da própria existência. Nosso espetáculo nos soou como um alerta e esperamos despertar na plateia o mesmo”, convida.

Palavra de especialista

Maurício Paz, professor de história

Uma nova chance a cada ano

“Cresci em uma família que se reunia no Natal e acho que essa simbologia carrego comigo até hoje. Estar entre aqueles que nós amamos na data é uma forma de nos reabastecermos para o próximo ano, de nos perdoarmos por não ter estado tão presentes, é um ritual de celebração da esperança e de reconexão com sentidos e coisas perdidas no cotidiano. Quanto aos presentes, sugiro sempre o mesmo exercício: dê presentes a crianças carentes, aquelas que realmente precisam. Mas, na sua ceia, dê atenção, dê olhares demorados e carinhosos àqueles que lá estão, dê abraços e beijos. Distribua gentileza e celebre a dor e a alegria de estar lá. Deixe o celular de lado e viva essa chance que todos temos a cada ano.”

Para assistir:

Quer saber mais sobre as simbologias de Natal? O professor Maurício Paz indica o filme Feliz Natal, de 2006, direção de Chistian Carion, que conta sobre uma trégua na noite de Natal em plena Primeira Guerra Mundial, quando os exércitos alemão e francês deixam suas trincheiras para, juntos, celebrar a data. “Apesar de ser uma ficção, ela foi baseada em vários relatos de armistícios ocorridos em guerras no século 20”, diz.