Que onde ele estiver não saiba que denunciei a sua idade, porque ele não confessava de jeito nenhum. Nem sob tortura. Só quando morreu, em 21 de junho de 2002, a data de nascimento dele foi exposta em todos os jornais e revistas. Há 16 anos ele partiu, no dia do jogo Brasil x Inglaterra pela Copa do Mundo. Escolheu até a data, pois era um dos cronistas de futebol mais respeitados do Brasil. Para homenageá-lo, escrevo o texto abaixo. Pedi permissão, ainda, a outro poeta e amigo histórico, Paulinho Assunção, para publicar o poema que ele fez sobre Roberto Drummond.
PS.: Para Ana Beatriz e Beatriz Drummond, filha e viúva do escritor, com todo o meu afeto!
Cumplicidade
Pelas 1001 formas de fazer um lead que você me ensinou
Pelos títulos e leads que você soprou pra mim
Pelo uso da primeira pessoa nos textos jornalísticos
Por me falar do jornalismo literário e de Gay Talase quando tudo cheirava a mofo
Por um novo jeito de olhar a notícia, sempre com olhos estrangeiros. Mesmo que eu já tivesse visto o fato mais de 100 vezes
Pela oportunidade de fazer o caderno de Turismo, sob os cuidados do colunista social também já falecido Wilson Frade, e escancarar o novo jornalismo com talento e competência inigualáveis
Por me salvar da mediocridade generalizada
Por fazer pautas que eram verdadeiras matérias
Por comentários assim: “Seu texto, Déa Januzzi, está tão bom que parece meu”
Pelo título da matéria que eu escrevi um ano depois da morte do meu pai, Guará, em 1979. “Aqui tudo bem. Só que eu estou sangrando”, que eu nunca esqueci e repeti em outras situações
Pela ideia da coluna Coração de Mãe, no caderno Bem Viver, que voltei a fazer, este ano, no jornal Estado de Minas
Por ser padrinho de batismo do meu filho Gabriel e nunca se esquecer de comparecer em cada aniversário enquanto você viveu
Pelos convites para tomar café que você me fazia todos os dias, diante da perplexidade de todos na redação. E lá íamos juntos para a primeira lanchonete do pedaço
Pelas infinitas conversas ao telefone diariamente
Pelos dois ou três chopes que a gente tomava sempre
Pelos almoços no Minas Tênis Clube, que você amava Pelos seus tênis vermelhos
Por ter amado a Savassi que também amo. Pelo termo inventado por você, “Savassear”
Pela sua ousadia, pelos seus livros que o levaram à fama e que eu lia religiosamente
Por ter feito sucesso como escritor sem nunca ter deixado BH
Por ter me confessado que quando a TV Globo pôs a minissérie Hilda Furacão no ar você ficava na janela olhando os apartamentos vizinhos para ver se todos estavam assistindo
Por ter me confessado que houve um tempo em que consideravam você um comunista e ninguém em BH alugava um apartamento para você
Por ter me dito que um dia você andou de sapatos furados com jornal dentro para sair na chuva, pois estava desempregado
Pelas crônicas de futebol que você fazia, libertando o texto burocrático dos cronistas da época
Pela clássica frase que os atleticanos jamais esquecerão: “Se houver uma camisa branca e preta pendurada no varal, o atleticano torce contra o vento”
Pelo rombo que você deixou em minha vida ao partir em plena Copa do Mundo de 2002
Pela cumplicidade, pela amizade verdadeira, por tudo o que você me ensinou.
Obrigada, Roberto Drummond, meu eterno mestre!
Os tênis vermelhos de Roberto Drummond
(por Paulinho Assunção)
Os tênis vermelhos de Roberto Drummond fazem falta no dia a dia do mundo.
Cinza, opaco, áspero, taciturno, tosco e soturno. Assim é o dia a dia do mundo sem os tênis vermelhos de Roberto Drummond. Entardece na Savassi.
Entardece na Rio Grande do Norte, é tarde na Rua Piauí, ali para os lados do Corpo de Bombeiros. Ubíquo, Roberto ocupa o bairro. Foi visto na Rua Pernambuco. Toma um chope na Cristóvão Colombo. Passeia com Greta Garbo pela Getúlio Vargas. Encontro-o. Ele diz: “Achei o título, será O cheiro de Deus”.
Roberto fala com as mãos em júbilo e em êxtase sobre o livro a caminho. Ele diz:”Conversei ontem à noite duas horas seguidas por telefone com o Vilela”.
Roberto acena. Roberto abraça. Roberto cumprimenta. O sol é pop, o pipoqueiro é pop, o livreiro é pop,a luz da tarde é pop sobre os letreiros da Livraria Ouvidor.
Os acadêmicos, anêmicos, temem a jaqueta índigo que Roberto faz esvoaçar ao vento. Os beletristas, de polainas, temem os tênis vermelhos de Roberto Drummond. Os maledicentes, em hordas, cochicham fel e idiotia atrás das árvores, atrás das páginas de um jornal, atrás das lentes engorduradas dos óculos.
Eis, então, que uma milícia de bem-te-vis cruza os céus da tarde savassiana. O sol é pop, o chope é pop, a alegria, como se em cápsulas, é pop, o manequim é pop, e a tigresa, com as garras pintadas de azul e olhos de amêndoa, vem anunciar que a vida é pop.
Vai um Bob Dylan pela Rua Paraíba. Vai um Júlio Cortázar pelos declives da Sergipe, vai o passo a passo pop, rubro, vermelho dos tênis vermelhos de Roberto pela noite que se avizinha.
*Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente