Biblioterapia usa literatura para auxiliar as pessoas a gerir emoções e se autoconhecer

Terapia considera questões psicológicas. A cura baseada em leituras existe desde a Antiguidade

por Lilian Monteiro 28/11/2018 10:00
Jair Amaral/EM/D.A Press
Marília Paiva, presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia, diz que o processo é indicado para todas as idades (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press )

O historiador e professor Leandro Karnal já disse que “ler é viver. Ler é ser”. Não existe solidão para quem está sempre acompanhado da leitura. O analista de mídias sociais Mateus Ferreira Moreira, de 24 anos, é de Cabo Frio (RJ), mas há um ano e meio veio morar em Belo Horizonte. Outra cidade, novas experiências e o desafio de morar sozinho e longe da família pela primeira vez. Apesar da vontade de mudança, não foi nada fácil. “Não conhecia nada, vim procurar emprego e acabei desenvolvendo uma ansiedade. Fui parar numa médica, que me recomendou terapia, onde me foram passados livros de acordo com o momento em que vivia.”

Para Mateus, os livros o fizeram enxergar melhor o seu momento. “Não era um leitor assíduo, lia por conta da faculdade, mas descobri outro mundo. Deparei-me com livros que revelaram meus medos e determinadas convicções, que, muitas vezes, impediam meu crescimento, limitavam minha visão de vida. Eles me fizeram ver o presente e seguir em frente. O livro me auxiliou a me enxergar melhor, me apresentou exemplos que me conscientizaram e me fizeram acordar, prestar atenção em mim e no que quero para a minha vida. Desde então, é difícil me ver longe deles. Recomendo a todos.”

O depoimento de Mateus só confirma o bem que faz a chamada biblioterapia. Marília Paiva, bibliotecária e presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia - 6ª Região, explica que, do ponto de vista mais literal, seria o tratamento feito por meio da leitura (de livros), mas uma definição mais correta seria a leitura como auxiliar para o processo de autoconhecimento das pessoas, propondo a interpretação das mensagens transmitidas pelo enredo, que utiliza a literatura como mediadora entre o leitor e suas questões subjetivas. Os princípios de uma cura baseada em leitura existem desde a Antiguidade e, na Idade Média, o tema da leitura “para o espírito” também teve destaque. No sentido mais estrito terapêutico, existem descrições de experiências em hospitais a partir do século 17. No século 20, como tantas terapias, o termo passou a ser usado em publicações científicas e, no século 21, o tema reaparece e sai renovado nas publicações na área de biblioteconomia.”

A biblioterapia é indicada para todas as idades, já que as leituras e a mediação serão adequadas a cada público (no caso de uma atividade bibliotecária ou terapia em grupo) ou a cada indivíduo (no caso de terapia individual). Marília Paiva explica que a biblioterapia, no sentido estrito, deve ser conduzida por um terapeuta, que pode ter formações diferentes. “A terapia pode ocorrer em ambientes informais de compartilhamento de leituras, em clubes de leitura ou bibliotecas, conduzida por um mediador preparado. Bibliotecários podem se preparar para esse tipo de proposta, com muito estudo e responsabilidade. Assim como psicólogos, psiquiatras, profissionais da área de educação e assistentes sociais com formação e habilidades terapêuticas e vasto conhecimento sobre literatura, para buscar livros transformadores. A terapia literária começa com a adequação dos livros para o público-alvo. O processo requer escolha cuidadosa do material que será utilizado, assim como a supervisão, para garantir que a obra apresentada se encaixe na capacidade de leitura, limitações físicas, estilo de leitor e o nível do desafio psicológico a ser ultrapassado. Após a leitura, há um momento do diálogo entre o biblioterapeuta e o grupo de leitores ou leitor. Esse é um momento valioso de interação e troca de sensações e sentimentos que emergiram durante a leitura.”

Marília Paiva ressalta que a leitura afeta a vida das pessoas de formas inimagináveis e indescritíveis, já que a literatura, como a vida, é complexa, surpreendente e, por outro lado, ao longo de toda a trajetória humana, ainda estamos buscando respostas a perguntas fundamentais sobre a finalidade de nossas experiências. A busca do afeto, a compreensão de nossas escolhas, enfim, as alegrias e decepções da nossa experiência. “Um exemplo são obras como A arte de amar, de Ovídio, escrita séculos antes de Cristo, e que se dedica a questões que ainda hoje ocupam revistas e prateleiras de livrarias: como conquistar quem se ama? Como lidar com a perda de um amor?. Ou seja, mais de 2.500 anos depois, essa ainda é uma questão que nos aflige.”

A escolha dos livros é parte fundamental da biblioterapia. Marília Paiva avisa que a questão do gosto pessoal é bem complexa. Do que gostamos? “De fato, uma leitora competente e com grande experiência pode passar a ter preferências, mas o que dizer do ‘gosto’ de pessoas que sempre tiveram acesso a textos pobres e empobrecedores? Nesse caso, o aparente gosto nada mais é do que a leitura do que é familiar, do que a pessoa dá conta... Mas deixando essa questão de lado, pela impossibilidade de tratá-la aqui, a leitura tanto pode ser indicada pelo mediador (mas a compreensão e sensibilidade ao texto, assim como às artes em geral, é imprevisível) quanto pode ser apresentada pela pessoa que participa do grupo. Num clube de leitura, e mesmo numa psicoterapia tradicional, um leitor pode trazer um texto que tenha lhe tocado ou incomodado ou gratificado especialmente, e, a partir de sua conversa sobre o livro, ampliar o seu autoconhecimento e, quem sabe, superar uma dificuldade.”

RELATO AO GENERAL

Paulo Filgueiras/EM/D.A Press
Mateus Ferreira, de 24 anos, conta que a leitura o fez prestar mais atenção em si mesmo (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)
Com tantas experiências vividas, Marília Paiva revela que, no fim de junho, ao terminar uma disciplina na universidade, ganhou de presente de um aluno um livro chamado As brasas, de um autor do qual nunca tinha ouvido falar (Sandor Marai), com um improvável personagem, um general do império austro-húngaro, que tivera um perfeito amigo durante a infância, juventude e início da idade adulta... Em determinado dia em que os dois caçavam nas matas do jovem militar, já casado, ele percebe que o amigo lhe aponta a arma que deveria apontar para uma presa. Vão embora em silêncio e, no dia seguinte, o amigo desaparece sem jamais dar notícias. Quarenta e um anos depois, já viúvo e amargo, o velho general recebe um bilhete de que o velho amigo de juventude está na cidade e quer vê-lo. Grande parte do livro é a noite do encontro dos dois, na casa do general, que passará a noite a relembrar aquele dia fatídico, e relata a sua decadência e angústia em todas essas décadas, por uma explicação, uma resposta.... que cobra ao fim do jantar.

Bom, sem contar o fim da noite, Marília Paiva diz que esse livro a arrebatou completamente, ao ponto de “levá-la às minhas sessões de psicoterapia clássica, pois vivia um momento de busca de explicações para atitudes que não podia compreender. E eu, tal qual o velho general, estava prestes a sucumbir em busca de respostas que vinham de outra pessoa, e que poderiam jamais vir, e às quais poderia condenar minha própria vida. Viver a experiência desse personagem por meio da literatura me levou à compreensão de minha própria situação e ajudou no meu processo de cura de um sofrimento ao qual eu poderia também condenar muitos anos de minha vida, tal qual aquele general, que paralisou quatro décadas da vida preso a um momento sobre o qual não tinha controle e cujas respostas não poderia jamais adivinhar.”

Benefícios da leitura

» O livro apresenta outras formas de ver o mundo

» A terapia literária começa com a adequação dos livros para o público-alvo

» Momento valioso de interação e troca de sensações e sentimentos que emergiram durante a leitura

» Estudos apontam que a biblioterapia já era praticada desde a Idade Antiga, entre as civilizações egípcia, grega e romana. Durante a Idade Média, a cura em hospitais era auxiliada pela leitura da Bíblia e, no Cairo, ocorria como método terapêutico suplementar às leituras do Corão

» Outros levantamentos revelam que já na Primeira Guerra Mundial foram criadas bibliotecas em hospitais de campanha, situação que se repetiu também durante a Segunda Guerra Mundial, quando os médicos das tropas americanas observaram que os soldados tratados com a biblioterapia se recuperavam mais rápidos dos traumas

» A leitura é libertadora e auxilia a psique a encontrar o equilíbrio necessário para dosar as situações cotidianas com o peso que realmente representam. Ela se revela uma forma eficaz de estimular as pessoas a encontrarem soluções para seus problemas, melhorando a qualidade de vida e a gestão da emoção.

Saiba mais: A origem

O Dia do Livro no Brasil surgiu em homenagem à fundação da Biblioteca Nacional do Livro, em 1810, pela Coroa portuguesa, e é comemorado em 29 de outubro. Na época, D. João VI trouxe para o país milhares de peças da Real Biblioteca Portuguesa, formando o princípio da Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro. Vale lembrar que o Brasil começou a editar seus próprios livros ainda em 1808, quando D. João VI fundou a Imprensa Régia. O primeiro livro editado foi Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga. Por aqui, ainda se comemora o Dia Nacional do Livro Infantil em 18 de abril, data de nascimento de Monteiro Lobato. Já o Dia Internacional do Livro é festejado em 23 de abril. A data foi instituída pela Unesco para homenagear o nascimento ou a morte de ícones da literatura, como Miguel de Cervantes, William Shakespeare, Inca Garcilaso de la Vega e Vladimir Nabokov.