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Filho de peixe, peixinho é

Desde pequenos, filhos se espelham nos pais e costumam seguir seus passos, nas atitudes e escolhas

Thereza e Denise, mãe e filha, costumam realizar trabalhos artesanais juntas, aproveitando para colocar a conversa em dia - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Quando pequenos, os filhos costumam se espelhar nos pais, tanto no caráter e personalidade quanto no comportamento e atitudes. Motivados pelo contexto em que crescem, geralmente, tendem a seguir também os passos profissionais, por afinidade, ou simplesmente por se orgulhar da atividade desenvolvida pelos pais. É como diz aquele velho ditado: filho de peixe, peixinho é.

Os pais carregam autoridade, força, segurança, coragem e principalmente afeto. O estilo de vida proporcionado pela profissão e como ela é transmitida para a criança podem fazer toda a diferença na escolha efetiva de uma ocupação. Os pequenos, mesmo que naturalmente, repetem gestos, palavras e ações, sempre buscando ser iguais àqueles que os inspiram.

Para Andrea Brunelli, psicóloga da Clínica do Bem, as experiências, vivências, sistemas de valores e profissões vão se perpetuando sem ser nomeados explicitamente. Assim, “naturalmente”, muitos jovens repetem três ou quatro gerações da mesma profissão na contemporaneidade.

Apesar de que, muitos jovens não estão sendo obrigados a seguir carreiras sem buscar no âmbito familiar além do seu pertencimento, também seu espaço e sua diferenciação. “Encontramos também, na atualidade, uma geração que segue o legado familiar, mas procura por uma diferenciação dentro da carreira em repetição, trazendo a sua singularidade para os valores adquiridos”, observa a psicóloga.

É o caso da família Beltrão. A referência do pai na área do direito serviu de base para seus filhos amadurecerem a ideia de trilhar o mesmo caminho. Apesar de pensarem em profissões distintas, a inspiração do pai falou mais alto. Amanda Beltrão, advogada e filha mais nova de Luiz Beltrão, na hora do vestibular até pensou em seguir em alguma área da saúde, mas acabou se encontrando no direito. “Terapia ocupacional, nutrição e educação física.
Passei em todos eles. Mas tive muita insegurança e resolvi esperar mais um ano e ter a certeza do que queria para minha vida profissional”, comenta. “No ano seguinte, resolvi mudar radicalmente e escolhi o direito.

Um dos motivos que me levaram a fazer esta escolha foi o fato de o meu pai sempre ter tido sucesso na carreira e sempre nos ensinar a trabalhar com afinco, zelo, dedicação e amor. “Ele nunca me influenciou na escolha do curso e, sempre que questionava o que deveria fazer, ele me dizia para pensar com carinho e que tal escolha era pessoal. Portanto, cabia somente a mim decidir.”

Outro caso na família é o da servidora pública Juliana Beltrão, que, diferentemente da irmã, sempre teve o direito como primeira opção. “Não se tratou de uma escolha, mas algo que parecia nato, pois, de criança, observava meu pai vestindo seus ternos, saindo bem cedo para trabalhar com sua pasta marrom e voltando já bem à noite”, relembra a advogada. “Ao mesmo tempo em que era muito natural seguir a profissão de meu pai, era também uma pressão, pois me perguntava se alcançaria o sucesso, assim como o meu grande ídolo.”

Para ela, ter uma família com a mesma formação é uma experiência bem enriquecedora, embora, algumas vezes, conflituosa.
“Já que ideias e teorias para discutir sobre os ‘casos’ não faltam”, comenta.

INSPIRAÇÃO

Para ambas, o curso teve os seus percalços e sempre surgiam dúvidas. Mas o jeito dedicado e desprendido de bens materiais sempre inspirou a família. “Desde sempre, nosso pai nos ensinou que o sucesso não é o quanto tem em sua conta bancária, mas acordar todos os dias com amor e gratidão pelo que faz”, explica Amanda.

Segundo Luiz Beltrão, juiz aposentado e pai das meninas, é motivo de satisfação e alegria ver as filhas dando continuidade ao trabalho iniciado por ele, Já que a profissão lhe traz tanto orgulho e o faz relembrar um passado de muita dedicação, honestidade, transparência, ética e valores, que servirão de herança para os filhos.

O advogado nunca pensou em incutir ou convencer os filhos a seguir o caminho escolhido por ele. “Na nossa família sempre houve liberdade plena de pensamentos e para tomada de decisões. Os diálogos francos, abertos e sem preconceitos sempre prevaleceram para a decisão de cada um, sem qualquer influência paterna ou materna”, comenta. Para ele, cabe aos pais se aproximarem dos filhos, dialogando e orientando-os, para que possam trilhar os seus caminhos. A referência dos genitores continua sendo forte, mesmo quando eles se isentam de exercer tal influência.
A reportagem mostra histórias de pais e filhos que vivem a mesma paixão fraternal e profissional ou de filhos que ousaram e foram contra a maré dos ofícios.

De geração para geração
Mais do que características genéticas, os pais passam para os filhos valores e, geralmente, hobbies, que contribuem para fortalecer os laços parentais

A transmissão de conteúdos e valores pelos pai#s, de escolhas e comportamentos, mesmo que inconscientemente, é uma manifestação do vínculo com as gerações passadas e de grande importância para o reconhecimento do indivíduo. O compartilhamento de uma paixão entre familiares é extremamente rica e benéfica, podendo trazer grandes momentos de prazer e de construção de boas memórias e colaboração.

De acordo com Andrea Brunelli, psicóloga da Clínica do Bem, todos os indivíduos procuram pertencer a algum lugar, e o primeiro e maior vínculo é o familiar, em que receberam várias lições e heranças, desde o nome, patrimônio e vasto legado. “Mas não existe pertencimento sem que se rompam caminhos conhecidos e que se sintam incentivados em suas escolhas, seja na repetição de uma profissão por gerações, na efetivação de um hobbie, seja na conquista de um novo projeto”, comenta.

O jornalista João Dicker aprendeu com o pai que cozinhar é uma forma de demonstrar carinho e afeto - Foto: Aquivo Pessoal
Denise Cruz, aposentada e artesã, sabe o valor de estabelecer laços com a família. Desde pequena, viu sua mãe, Thereza Maria Rodrigues, fazer artesanato e bordados e cresceu vendo a arte passar em suas mãos. O trabalho manual se tornou um dos prazeres de sua vida e, hoje, é grata à sua mãe, por ter lhe ensinado o que sabia. “Minha mãe sempre foi bordadeira de mão cheia e herdei isso. Acabei desenvolvendo uma facilidade com desenhos também.
Tá no sangue, nasceu com a gente”, afirma.

A paixão se perpetuou ainda mais com o nascimento das filhas, que desenvolveram habilidades manuais inspiradas na mãe e na avó. Natália Cruz, proprietária do espaço de beleza La Cruz, encara a paixão pelo artesanato de sua família como verdadeiro resgate geracional. Um hobbie que atravessa gerações reafirma a relação da proximidade, do diálogo e dos laços afetivos cada vez mais fortes entre elas. “É uma forma de carinho, uma união necessária dentro das famílias. Desde pequena, fui criada junto com o artesanato, via minha avó e minha mãe fazendo trabalhos manuais e desenvolvendo suas habilidades”, ressalta, Natália. O trabalho manual e a relação com a arte e sua família foram tão significativas que acabaram influenciando a faculdade em desing de moda, profissão em que é formada.

Denise conta que esse compartilhamento de paixões reforçou os laços parentais e que é uma atividade que aproxima e melhora o convívio entre todos. “Uma vai se espelhando na outra. Somos uma família que sonha e que gosta de ver suas criações. Adoramos um desafio, essa é a verdade. Até meu marido, que não é dessa área, dá palpite nas criações”, avalia Denise Cruz.

Por sua vez, Natália revela verdadeiros benefícios com a prática aprendida com a mãe e a avó e a consciência da produção familiar nos produtos que consome. “Mais do que uma prática familiar, o artesanato é uma terapia. Num mundo tão acelerado, tão maçante, em que as pessoas querem tudo para ontem, essa arte ajuda a me desacelerar”, comenta. Essa união familiar, essa troca de saberes e o resgaste das gerações “é importante exercício de valorização do próximo e da tradição familiar”, destaca.

BEM ESTAR

O estudante de medicina Rodolfo Cruz Losqui teve como grande influência a sua mãe, que sempre gostou muito de praticar esportes. Desde pequeno, ele a acompanhava nas aulas de musculação, e, a partir dos 8 anos, começou a correr com ela. “Nossa relação sempre foi muito próxima. Então, é difícil dizer que a atividade nos aproximou, mas, com certeza, é um ritual nosso.” Rodolfo brinca que algumas famílias gostam de sentar pra almoçar juntas. Em sua casa, essa hora seria a refeição antes e depois da academia. “Fora que, quando estamos correndo, acabamos conversando mais”, comenta.

Além de ficar próximo de sua mãe, esse hábito saudável também traz grandes benefícios para sua saúde. Rodolfo é diabético (diabetes mellitus do tipo 1), o que quer dizer que, desde os 2 anos, ele faz uso de insulina para ajudar a controlar a doença. Dessa forma, o esporte é fundamental em sua vida, uma vez que o ajuda a controlar e a reverter os efeitos negativos da doença. “Vejo que muitos dos que a têm não consideram fácil manter esses hábitos, mas, graças ao estímulo familiar, não consigo pensar minha vida sem o esporte.”

Como a musculação se tornou um ritual para a família, esse momento em que estão fazendo algo que lhes dá prazer cria abertura para abordar assuntos, trocar experiências e, principalmente, passar mais tempo com a família. “Hoje, como tenho uma rotina muito corrida, e meus pais também, acaba que esses momentos são os poucos que posso compartilhar com eles”, ressalta o estudante.

Habilidades que aproximam

Os laços de parceria e amizade desenvolvidos entre pais e filhos se fortificam com o tempo, revelando interesses em comum, seja pela culinária, por jogos, seja por hobbies os mais diversos. Felipe Tadeu, estudante de engenharia mecatrônica, compartilha alguns deles com seu pai. Um deles é o amor pela culinária. “A minha família tem um sítio e, sempre que a gente ia para lá, via o meu pai cozinhando pra gente. Aos poucos, fui me interessando”, relata. Felipe conta que o interesse partiu dele e que o pai acabou dando uma ajuda. Além disso, pai e filho também compartilham amor pelos jogos, principalmente o xadrez. “A gente sempre brincou com muitos jogos, principalmente quando eu era pequeno. Os meus preferidos são xadrez e videogame.”

Mas Felipe defende a ideia de que o interesse por determinado hobbie deve nascer da própria pessoa, sem ser forçado por ninguém. “A partir do momento que você é obrigado a fazer alguma coisa, a gostar de um hobbie, isso deixa de ser algo divertido e prazeroso.” Além disso, ele acha muito importante essa influência entre pais e filhos, no sentido de que ajuda a fortalecer a relação. “É interessante os filhos testarem coisas que os pais gostam e vice-versa, pois podem se divertir muito durante o processo.”

Clóvis Guimarães, professor e pai de Felipe, conta que, desde sempre, foi muito próximo do filho, e o incentivava a experimentar coisas novas. “Ensinei- o a cozinha, começando com receitas mais simples, como omelete”, relembra. Além da culinária, eles também gostavam de jogar xadrez e outros jogos de tabuleiros. Clóvis acredita que esses interesses em comum são fundamentais numa relação entre pai e filho. “Eu e o Felipe sempre tivemos boa convivência, mas a culinária e os jogos aproximaram a gente ainda mais.”

O jornalista João Dicker também tomou gosto pela culinária graças à influência de seu pai. “Por ser filho de um chef de cozinha, passei a infância em uma casa com cheiro de comida, aquele aroma reconfortante e convidativo de que algo gostoso estava sendo preparado. Com os anos, fui acompanhando as técnicas, processos, ensinamentos e diversas possibilidades que o universo gastronômico tem e, dessa forma, me apaixonei”, conta.

Como sempre gostou de comer bem, João tinha interesse pela forma como os pratos eram preparados. E, aos 12 anos, já começava a cozinhar de fato. Ele conta que, com seu pai, aprendeu não somente a técnica envolvida na cozinha, mas que cozinhar é compartilhar carinho, afeto, tradições. Sentimentos e sensações se despertam por meio do sabor, das texturas, dos aromas e das cores de um prato. Para João, cozinhar é um “momento especial de encontro com quem está ali com você, sentado à mesa ou acompanhando o preparo, ao lado do fogão”.

O hobbie também trouxe diversos benefícios para a vida do jornalista, como a independência para fazer sua própria comida e a forma com que ele se relaciona com outras pessoas. “Acredito que cozinhar é uma forma de compartilhar sentimentos com pessoas queridas. Então, tenho muito prazer em reunir amigos e família para preparar algo gostoso e transformar o encontro em uma celebração.”

Para João, o fato de compartilhar um hobbie com seu pai é algo que serviu para aproximá-los ainda mais. “Apesar de termos gostos em comum em outras atividades, cozinhar se tornou um elo forte e especial entre nós. Uma ligação que ambos gostam de reforçar e desenvolver.” Além de ser chef de cozinha, o pai de João também é astrólogo e artista plástico, que sempre incentivou a criatividade dele em formas diversas, e uma delas acabou sendo a gastronomia.

COLEÇÃO

O estudante de cinema Fábio Costa compartilha o gosto de colecionar com sua mãe, Cristina Costa, que tinha como hobbie colecionar cartões postais e o sonho de um dia se tornar diplomata. Cristina cresceu, alguns sonhos mudaram, mas o gosto pela coleção de cartões continuou o mesmo. Para chamar a atenção da mãe, Fábio começou a copiá-la. “Logo começamos a trocar cartões e, sempre que tínhamos a chance, pegávamos cartões um para ooutro”, lembra.

Para Fábio, essa experiência foi fundamental para se aproximar de sua mãe.“Isso era algo nosso, ninguém mais fazia isso. Foi algo que nos ligou.” Esse laço estabelecido entre eles foi tão importante que o estudante de cinema considera passar essa tradição para frente, caso tenha filhos. “Acho que os filhos passam a entender os pais, e os pais podem nos passar lições sem que pareçam muito duros, e de maneira educativa.”

INFLUÊNCIA

De acordo com a psicóloga Paula Pimenta, é natural que os filhos se inspirem nos pais, já que eles são tomados como referência e modelo para os filhos. “Isso acontece por esse mecanismo de identificação”, explica. Além disso, as sensações de prazer e satisfação que a mãe ou pai apresentam com seu hobbie também acabam sendo um fator de influência para o filho. De acordo com a psicóloga Paula Pimenta, “hobbie é prazer, é algo que encanta os outros, inclusive os filhos”. Um ponto positivo, na sua visão, é a questão da parceria. “Por exemplo, quem gosta de andar de bicicleta ou moto, faz trilha junto, e isso vira uma oportunidade de se aproximar do outro, de se divertir.” Esse laço aumenta o prazer da convivência entre pais e filhos, além de servir como oportunidade para conversar sobre assuntos mais sérios em contextos descontraídos.

* Estagiários sob a supervisão da subeditora Elizabeth Colares.