Velhas guerreiras

"Tomei banho de cachoeira, acampei, preguei 'faça amor, não faça guerra' e andei pelas trilhas selvagens de Minas Gerais para me banhar de liberdade"

por Déa Januzzi 12/11/2018 07:00
Lelis/Ilustração
(foto: Lelis/Ilustração)

Confesso que nasci livre de preconceitos, de rótulos, de gavetas e de etiquetas, que escolhi fazer jornalismo na década de 1970 e que enfrentei a ditadura no exercício da profissão. Confesso que, junto com as mulheres da época, fiz a revolução feminina, abri as portas de casa para conquistar o mercado de trabalho e as universidades. E que, em 1974, apenas eu e Maria Cristina Bahia Vidigal dedilhávamos as teclas verdes da máquina Remington, em meio a um contingente de homens. Confesso que fomos as primeiras a entrar no estádio do Mineirão para cobrir uma partida de futebol em que Beckenbauer era o astro do time alemão.

Confesso que subi as escadas da Igreja São José - palco das nossas inquietações e protestos - empunhando cartazes com os dizeres “Quem ama não mata”, quando, em menos de 10 dias, dois maridos assassinaram suas mulheres, Eloisa Ballesteros Stancioli e Maria Regina Souza Rocha. A primeira estava dormindo quando levou cinco tiros nas costas; a outra foi morta em casa, depois de chegar da academia. Motivo: ciúme obsessivo. Antes delas, Jô Sousa Lima Lobato foi morta pelo marido e engenheiro Roberto Lobato, em 1971 e, cinco anos depois, foi a vez de a socialite Ângela Diniz ser assassinada em Búzios pelo playboy Doca Street.

Durante décadas, o homem que matasse uma mulher - esposa, namorada, amante, ex-esposa, ex-namorada ou ex-amante - tinha uma saída fácil para se livrar da cadeia. Bastava alegar que estava lavando a honra com sangue, em legítima defesa da honra. A absolvição era garantida em nome do casamento, da família, da moral e dos bons costumes. Confesso que as feministas da minha época tinham trabalho em excesso e que combateram muito. Travaram uma verdadeira guerra para retirar a mulher desse lugar sombrio.

Confesso que 38 anos depois me surpreendi com uma foto desse tempo. Eu estava lá como repórter, aos 28 anos e os sonhos todos inteiros, querendo fazer a revolução de costumes. Lá estavam também, entre outras, dona Helena Greco, do Comitê Feminino pela Anistia, a poeta Adélia Prado, a fotógrafa Vera Godoy, as jornalistas Mírian Chrysthus, Beth Fleury, Beth Cataldo, Dinorah Carmo, Tetê Rios, Mirtes Helena Scalioni. Essas mulheres, com mais de 60 anos hoje, algumas com netos a tiracolo e cabelos assumidamente brancos, se uniram a jovens feministas para continuar a briga. Porque a matança continua. Só em Minas uma mulher é morta por dia por seus maridos e companheiros por motivos banais como o fim de um relacionamento, uma suspeita de traição, um olhar enviesado ou qualquer motivo que o homem considere deslize.

Confesso que somos as feministas que há 38 anos organizamos um movimento denominado “Quem Ama Não Mata”, iniciado em Minas em agosto de 1980 e que foi vitorioso na luta contra a tese da “legítima defesa da honra”, que deixava livres da cadeia assassinos confessos. A partir desse movimento, não só essa tese do mundo jurídico foi derrotada, despertando a vontade de lutar de centenas de mulheres em passeatas Brasil afora, como plantamos a semente que se transformou em seguida nos dois primeiros conselhos estaduais de direitos das mulheres (em Minas e em São Paulo, em 1983, e ainda na primeira delegacia das mulheres, na Minas de 1983).

Confesso que vivi um tempo de utopia, mas de luta, de conversas em mesa de bar, de encontros, e que me lembrei, com ternura, de Rose Marie Muraro e de Bete Davis, que revolucionaram o mundo feminino. Mulheres que se tornaram donas do próprio corpo, senhoras de si com o advento da pílula anticoncepcional. Confesso que comecei a fumar e beber como forma de protesto, de causar espanto na mesmice da época. Tomei banho de cachoeira, acampei, preguei ‘faça amor, não faça guerra’ e andei pelas trilhas selvagens de Minas Gerais para me banhar de liberdade. Confesso que não fui ao Woodstock, mas que escutei Janis Joplin e Jimmy Hendrix até o disco de vinil arranhar.

Confesso que tive um pôster de Che Guevara durante muito tempo na parede do meu quarto e que meu sonho era entrevistar Fidel Castro. Mas hoje preciso me redimir de alguns enganos do velho feminismo. Nós, feministas de então, desprezamos o trabalho doméstico, criamos um jeito desolador de ter filhos - a produção independente, esquecendo que filhos precisam de pai e mãe. Lutamos pela igualdade com os homens. Hoje, com mais de 60 anos, me pergunto: onde já se viu?. Não sei lavar nem cozinhar nem arrumar casa. Brigo até com a máquina de lavar roupa. Não sei passar. Passo de um lado, amarrota de outro e, quanto mais caos está a minha casa, mais instauro a desordem, mais perdida fico, além de me consumir em maços de cigarros e taças de vinho, mesmo que de cristal. Minha culpa, minha máxima culpa.

Por que não aprendi a bordar, a tricotar ou fazer crochê como minha mãe? Por que não consigo lidar com as panelas no fogão? Confesso que, às vezes, tento. É uma verdadeira ginástica, em meio a uma explosão de sentimentos. Minha culpa, minha máxima culpa! Nem os incensos de mirra e as flores em cima da mesa conseguem ordenar os meus pensamentos.

Confesso de joelhos que não pude ir ao ato público do Movimento Quem Ama Não Mata, na última sexta-feira, mas que em silêncio, do meu front aqui na Serra do Cipó, me orgulhei dessas loucas mulheres que não se calam diante das injustiças e que continuam fazendo uma revolução, mesmo que dentro de si mesmas, no crepúsculo da existência!!

*Déa Januzzi escreve esta coluna quinzenalmente