Confesso que nasci livre de preconceitos, de rótulos, de gavetas e de etiquetas, que escolhi fazer jornalismo na década de 1970 e que enfrentei a ditadura no exercício da profissão. Confesso que, junto com as mulheres da época, fiz a revolução feminina, abri as portas de casa para conquistar o mercado de trabalho e as universidades. E que, em 1974, apenas eu e Maria Cristina Bahia Vidigal dedilhávamos as teclas verdes da máquina Remington, em meio a um contingente de homens. Confesso que fomos as primeiras a entrar no estádio do Mineirão para cobrir uma partida de futebol em que Beckenbauer era o astro do time alemão.
Confesso que subi as escadas da Igreja São José - palco das nossas inquietações e protestos - empunhando cartazes com os dizeres “Quem ama não mata”, quando, em menos de 10 dias, dois maridos assassinaram suas mulheres, Eloisa Ballesteros Stancioli e Maria Regina Souza Rocha. A primeira estava dormindo quando levou cinco tiros nas costas; a outra foi morta em casa, depois de chegar da academia. Motivo: ciúme obsessivo. Antes delas, Jô Sousa Lima Lobato foi morta pelo marido e engenheiro Roberto Lobato, em 1971 e, cinco anos depois, foi a vez de a socialite Ângela Diniz ser assassinada em Búzios pelo playboy Doca Street.
Durante décadas, o homem que matasse uma mulher - esposa, namorada, amante, ex-esposa, ex-namorada ou ex-amante - tinha uma saída fácil para se livrar da cadeia.
Confesso que 38 anos depois me surpreendi com uma foto desse tempo. Eu estava lá como repórter, aos 28 anos e os sonhos todos inteiros, querendo fazer a revolução de costumes. Lá estavam também, entre outras, dona Helena Greco, do Comitê Feminino pela Anistia, a poeta Adélia Prado, a fotógrafa Vera Godoy, as jornalistas Mírian Chrysthus, Beth Fleury, Beth Cataldo, Dinorah Carmo, Tetê Rios, Mirtes Helena Scalioni.
Confesso que somos as feministas que há 38 anos organizamos um movimento denominado “Quem Ama Não Mata”, iniciado em Minas em agosto de 1980 e que foi vitorioso na luta contra a tese da “legítima defesa da honra”, que deixava livres da cadeia assassinos confessos. A partir desse movimento, não só essa tese do mundo jurídico foi derrotada, despertando a vontade de lutar de centenas de mulheres em passeatas Brasil afora, como plantamos a semente que se transformou em seguida nos dois primeiros conselhos estaduais de direitos das mulheres (em Minas e em São Paulo, em 1983, e ainda na primeira delegacia das mulheres, na Minas de 1983).
Confesso que vivi um tempo de utopia, mas de luta, de conversas em mesa de bar, de encontros, e que me lembrei, com ternura, de Rose Marie Muraro e de Bete Davis, que revolucionaram o mundo feminino. Mulheres que se tornaram donas do próprio corpo, senhoras de si com o advento da pílula anticoncepcional. Confesso que comecei a fumar e beber como forma de protesto, de causar espanto na mesmice da época.
Confesso que tive um pôster de Che Guevara durante muito tempo na parede do meu quarto e que meu sonho era entrevistar Fidel Castro. Mas hoje preciso me redimir de alguns enganos do velho feminismo. Nós, feministas de então, desprezamos o trabalho doméstico, criamos um jeito desolador de ter filhos - a produção independente, esquecendo que filhos precisam de pai e mãe. Lutamos pela igualdade com os homens. Hoje, com mais de 60 anos, me pergunto: onde já se viu?. Não sei lavar nem cozinhar nem arrumar casa. Brigo até com a máquina de lavar roupa. Não sei passar.
Por que não aprendi a bordar, a tricotar ou fazer crochê como minha mãe? Por que não consigo lidar com as panelas no fogão? Confesso que, às vezes, tento. É uma verdadeira ginástica, em meio a uma explosão de sentimentos. Minha culpa, minha máxima culpa! Nem os incensos de mirra e as flores em cima da mesa conseguem ordenar os meus pensamentos.
Confesso de joelhos que não pude ir ao ato público do Movimento Quem Ama Não Mata, na última sexta-feira, mas que em silêncio, do meu front aqui na Serra do Cipó, me orgulhei dessas loucas mulheres que não se calam diante das injustiças e que continuam fazendo uma revolução, mesmo que dentro de si mesmas, no crepúsculo da existência!!
*Déa Januzzi escreve esta coluna quinzenalmente.