Resistir é preciso

"Quem tem tempo de passar uma rosa na casa ou no quarto para receber a pessoa amada? Isso faz parte de uma tradição popular, a varredura de paredes e móveis com ervas e flores"

por Déa Januzzi 29/10/2018 07:00
Ilustração/Lelis
(foto: Ilustração/Lelis)

Que não se enganem: as conquistas irreversíveis não vieram do nada, como pode parecer nesses tempos velozes, de informações e relações fluidas. As conquistas imprescindíveis para todos e principalmente para as mulheres, os negros, os índios e os homossexuais não surgiram do nada, de repente, como pode parecer.

Ela sempre lutou contra a maré, afinal, faz parte de uma geração que abriu portas, derrubou preconceitos, tentou fazer a revolução de costumes, mas, hoje, tem perguntas sem respostas: resistir ou desistir?. Depois dos caminhos percorridos, ela tem certeza. Só há um jeito de resistir e de estar neste mundo enlouquecido pela ira: na simplicidade.

Daqui, da Serra do Cipó, ela continua no combate com armas pacíficas, que nunca foram usadas em outras guerras. Convida todos: venham nesta manhã de domingo participar de um piquenique na montanha, lá na Pedra do Elefante, para comemorar o aniversário de Waninha, a defensora dos animais e do meio ambiente. Ela transforma tudo em arte. Odeia televisão e não se deixa contaminar. É viciada em arte e em tranquilidade. Fotografa tudo, desde uma semente em forma de coração que caiu no chão, até as flores raras do cerrado. A sua casa é um portal para o Universo.

Arrumem uma carona, pois há lugar no carro. Há lugar para você, que insiste em não ter carro, que prefere esse jeito novo de caminhar em silêncio, apreciando cada detalhe da paisagem. Antes, abasteçam as cestas com pão integral, frutas, bolo indiano, para compartilhar na hora dos parabéns. Pão de queijo recheado com pasta de frango e abacaxi, que Joelma preparou com tanto amor. Priscila trouxe toalhas para colocar as iguarias e vem tentando transformar o turismo na Serra do Cipó. Pedro e Gabi, mais jovens, prepararam o pão de fermentação natural com cebolas caramelizadas de dar água na boca, principalmente em Thilo, marido de Joelma, que se transportou para a Alemanha, terra de origem, ao degustar essa preciosidade culinária.

Márcia também veio. Ela faz parte de uma geração que conheceu os horrores da ditadura, mas que escolheu estar bem consigo mesma, em paz, na Serra do Cipó, onde tem uma casa que lembra uma oca, pois é apaixonada pelo povo indígena e com ele aprendeu a resistir neste país selvagem. Cori também largou a cidade para encontrar refúgio na Serra do Cipó, lugar que escolheu para viver em paz, onde pode ir para dentro de si mesma, se manter inteira e vibrar em outra sintonia praticando ioga, meditando, caminhando serenamente no aqui e agora.

Sheila é mais jovem, mas tem mãos de fadas. Massoterapeuta e especialista em terapias complementares, como acupuntura, ela tem certeza de que, “em momentos conturbados, um dos atos mais altruístas é se cuidar e estar bem, pois, só assim, é possível apoiar quem não está”. Foi por isso que ela veio morar na Serra do Cipó. Uma massagem de Sheila é capaz de desenferrujar o coração e os sentidos, abrir as portas da percepção para uma vida saudável. Ela não massageia só o corpo, mas a alma. Não tem carro nem quer. Arrumou uma bicicleta cor-de-rosa, dessas vintage, bem forte, que consegue vencer as ruas de pedregulhos e encontrar o rio, a cachoeira, o córrego. Sheila consegue tirar a dor do corpo com mãos mágicas e deixa qualquer um em elevação espiritual com seus óleos essenciais e sua ternura.

Sheila também resiste e vem para o piquenique com a alegria de ser quem é. Trouxe um bolo indiano dos deuses, da Juju Quitutes. Ah, me esqueci de avisar. Não se esqueçam dos sacos de lixo, porque não há nada mais aterrorizante do que marcar passagem com sujeira e restos de festa.

Venham, prestem atenção na paisagem, nessa formação rochosa de lapa vermelha em forma de um elefante deitado. É um presente da natureza para a Serra do Espinhaço. Pena que o tempo está frio, pois a piscina de água natural chama para um mergulho. Ah, se tiverem tempo, vejam as pinturas rupestres da Pedra do Elefante - e conversem com Rodolfo, médico aposentado pela UFMG e dono de pousada, que trocou a cidade pela Serra do Cipó - e continua curando a si mesmo com doses certas de natureza.

Depois do parabéns pra você e muitos anos de vida, todos são convidados para uma roda, onde Joelma comanda a meditação e Thilo faz o som, parecido com o dos sinos dos mosteiros, com os sons da natureza e o bater de asas dos anjos. Joelma pede paz, alegria, harmonia, vibra em outra dimensão, reza por este país, por mais tolerância, para que o amor vença sempre. Depois, vem uma abençoada chuva de alecrim.

Aqui, todos sabem que resistir é ajudar as pessoas a resgatar a magia dos quintais, o perfume das flores, os casos da beira dos fogões a lenha, as orações das tias, as receitas das avós que faziam alquimia na cozinha, enfim, a vida que corria como um rio, sem intolerância, sem ódio, sem banalização da violência! Aqui, não é banal sentar no Empório do Pão com Leandro, o proprietário, e tomar um café com ele e outros amigos. É uma oportunidade de compartilhar gentileza, sentimento raro neste mundo de hoje. Aqui, na simplicidade, tenta-se respeitar as nossas casas: corpo, vestuário, morada e planeta, que, segundo o arquiteto Carlos Solano, espelham o que somos.

Todos aqui, pessoas da geração que ajudou nas conquistas primordiais do século 20, agora querem viver desse jeito, na simplicidade, sem guerras, mas com flores e cachoeiras, com encontros na montanha, com o silêncio que se faz necessário neste momento tão grave.

Somos eternos guerrilheiros e vamos resistindo, mesmo que em outra vibração, abrindo as janelas para um outro tempo, como diz Solano: “O tempo do abraço, da convivência, da experiência direta, do cuidado. ‘Se eu soubesse que tu vinhas no domingo de tardinha, eu varria a minha casa com uma rosa alexandrina’, diz o verso popular. Quem tem tempo de passar uma rosa na casa ou no quarto para receber a pessoa amada? Isso faz parte de uma tradição popular, a varredura de paredes e móveis com ervas e flores. Uma faxina com um chá medicinal - o famoso banho de casa – um quitute retirado de um caderno de receitas da avó e preparado com as próprias mãos.” Aqui, deste front, resistiremos. Mesmo que essa revolução tenha que ser travada pela geração dos novos velhos, “sob os efeitos subversivos da aposentadoria”. Citação de uma velha amiga também cansada de guerra!

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente