Com o tempo seco que esturrica tudo aqui na Serra do Cipó, quero falar hoje das flores do cerrado que nascem no meio da poeira e nos lugares mais improváveis, às vezes numa lapa de pedra, à beira de um barranco. Não se sabe como pode nascer uma flor tão delicada no meio da secura que trinca a boca, arrebenta os pés, resseca o corpo por dentro e por fora.
A Calliandra vermelha é uma delas: tão bela, forte e guerreira, e ao mesmo tempo tão delicada, que sobrevive a maior parte do tempo sem água. Resiste a tudo. Assim como o pequizeiro, cuja beleza da flor esconde a fortaleza da árvore. O fruto tem sabor e cheiro exóticos e marcantes, para esconder os espinhos. Tem gente que ama o sabor do pequi e outros que não suportam, como eu. O pequizeiro é uma árvore exótica, frondosa e generosa. A flor de algodão-do-campo também nasce no meio do nada.
Entre as flores do cerrado estão as mulheres nativas, que lutam por um lugar no mundo, mas silenciosamente, pois não têm voz nem são ouvidas, mesmo que gritem, que ponham fogo em suas casas em um dia de pavor.
São mulheres invisíveis. Vou falar hoje de uma flor do cerrado que mora na Serra do Cipó e que foi obrigada pelo pai a se casar aos 11 anos, teve o primeiro dos seus seis filhos aos 16 - e perdeu a paz na bebida. O nome dela é Maria Aparecida, ou Cida, como todos a chamam.
As conquistas femininas não passaram por esse lugar. A fala de uma feminista ofende todos, pois Cida acha que mulher “tem que apanhar para aprender.” Apanhou tanto que até hoje, aos 59 anos, com os filhos já criados, pede desculpas por viver.
Ah, quase me esqueço. Sei o nome completo dela, mas aqui todo mundo tem apelido. As mulheres são conhecidas pelo primeiro nome mais o nome do companheiro ou marido.
Cida é um doce.
Cida faz um angu de primeira. E olha que nunca gostei de angu.
Sabe aquelas vasilhas que vão para o fogão a lenha e ficam pretas que nem o carvão que faz a chama? Pois é: ela lava a panela tão bem, que fica brilhando. Serve até como espelho na falta de outro. A falta, inclusive, é sua companheira permanente.
Depois de sete meses internada, ela voltou pra casa. Aguentou firme por mais três meses, até que um dia alguém mexeu em uma de suas inúmeras feridas - e ela voltou a beber. Como se algum comentário abusivo abrisse de novo as cicatrizes, que voltaram a sangrar. Ia pra lá e pra cá embriagada.
Ela me abraça e pede desculpas. Eu peço desculpas pela minha própria solidão. Posso dar o braço e levá-la para uma casa que não tem nem portas? Todo mundo deu a sentença de que ela ia voltar a beber. A angústia me invade, pois tenho as minhas próprias dependências. Não sou um bom exemplo para ela, vamos ambas nos afundar no vazio, mergulhar nos subterrâneos da desesperança.
Mas é só conversar com Cida para ver o que está por trás da bebida. É saber quantas vezes levou surras indescritíveis, quantas vezes foi humilhada, abandonada, expulsa, vilipendiada, excluída. Quantas vezes teve que fazer o parto sozinha, no meio do mato, sem a ajuda de ninguém. Ela mesma cortou o cordão umbilical com um facão. Quando a parteira chegou, Cida a convidou para ser madrinha porque o bebê já estava a salvo. Certa vez, ela quase comeu a beirada do cobertor de tanta fome.
Cida fugiu da clínica onde estava internada, pois ainda guarda uma rebelião dentro dela, apesar de tudo. Está mais alegre, voltou a se aprontar e a se perfumar. Cida hoje é minha amiga e consegue fazer até metáforas. Bate ponto todos os dias na minha casa. Outro dia, disse para ela que o Teiú, um daqueles lagartos enormes que vivem na Serra do Cipó, estava rondando a minha casa, perto da fossa. (Aqui não tem rede de esgoto. Esse é o lado oculto do paraíso.) Ela me saiu com essa: “O Teiú morreu na fossa”. Rimos juntas, eu, ela e meu filho. Eu disse: “Você acabou de fazer poesia”. Ela riu tanto que até se dobrou.
Cida é tão distante da minha realidade, mas tão próxima da minha dor ancestral de ser mulher num mundo masculino. Confessa que não sabe nada, mas me ensina todos os dias. Ela conhece plantas, bichos, aves, flores, raízes de cura. Conhece o cerrado como poucas. É cheia de vida, gosta de namorar e de dançar Chora quando escuta a dupla Milionário e Zé Rico. Vê-la dançar é de aplaudir. Ela tem ginga, ritmo, charme e sedução. Mas também tem um lado animal, parece Iansã quando bebe.
Há alguns dias, Cida viajou para Conceição do Mato Dentro, para fazer carteira de identidade, que nunca teve. O pai aumentou a idade para que ela pudesse se casar. Ela vai voltar, agora com identidade própria. Quem sabe ela aprende com a poeta Cecília Meireles, que disse: “Aprendi com a primavera a deixar-me cortar toda, para voltar sempre inteira”. Quem sabe Cida chegue junto com a primavera!
*Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente .