Coração de mãe: Ela fez aborto e pode comungar com Deus

"Apesar de todas as dificuldades, ser mãe é degustar a vida passo a passo, é acreditar no futuro e em todos os milagres do dia a dia"

por Déa Januzzi 03/09/2018 14:44
Ilustração/EM/Lelis
(foto: Ilustração/EM/Lelis)

Ela confessa, de joelhos, que fez aborto. E que por muito tempo teve que abortar a fé para comungar com Deus. Confessa que sofreu horrores, foi chicoteada pela culpa católica, que deixou a religião de lado, pois a igreja do Vaticano não a amparava mais, apesar da dor que sentia por achar que acabara de cometer “um pecado mortal”.

Confessa, depois de ser pregada na cruz dos martírios internos, que nem sabia como é bom ser mãe, que um filho a salvaria de si mesma, de todas as loucuras, insanidades e desvarios, da eterna solidão de ter um companheiro que ficou em silêncio na hora da decisão, que não disse sim para a gravidez dela.

Confessa que nem conhecia o próprio corpo e o que a vida lhe reservava no futuro. Ela fez aborto, antes de o filho nascer e cobrar que não tem irmãos, não vai ser tio e que caminhará sozinho pela vida sem essa irmandade biológica.

Confessa que viveu com essa culpa por muito tempo. Como jornalista, fez uma série premiada sobre o aborto em 1978, que ganhou, na época, o prêmio da Federação do Comércio.

Confessa que as inquietações a levaram ao inferno dos seus dias, até que conheceu o salesiano irmão Raimundo Rabelo Mesquita, em 1979. Ele entrou na vida dela primeiro como fonte de matérias para acolher os meninos de rua, que na época eram conhecidos como trombadinhas e roubavam cordões de ouro na rua. Com a missão de Dom Bosco, irmão Mesquita e a repórter saíram para as ruas. Ele tentava mostrar o outro lado dos meninos. Um deles disse que “na rua a gente vira bicho para não ser comido como um bicho”. Esses meninos falavam a língua do pê, tinham cicatrizes no corpo de maus-tratos e até de marcas de cigarro apagados por outros no corpo.

Irmão Mesquita foi o primeiro a perdoá-la pelo aborto cometido. Sentados no Bar da Dona Dica, na Rua Rio de Janeiro, ele ouviu atentamente e a livrou de todas as culpas. Depois disso, ela pode finalmente engravidar em paz. Há 34 anos, ela sabe o que é ser mãe de todo o coração.

Confessa que nessa caminhada para a maternidade outra pessoa lhe deu colo, abrigou a sua escolha, amparou e contribuiu para que ela se livrasse dessa cruz. A ginecologista e obstetra Alba Pimenta Sizenando. Ela disse na época: “Esse filho você não vai tirar, porque é meu”. Ele nasceu, sob as bênçãos de irmão Mesquita e da doutora Alba. Os dois são amigos dela até hoje e torcem para que tudo continue dando certo, apesar das adversidades, pois filho não vem com manual de instrução, não tem ingredientes e modo de fazer. Não é receita de bolo.

Confessa, em ato de contrição, que fez psicanálise por mais de 20 anos para expurgar as culpas católicas de uma igreja velha, parada no tempo. Confessa que criar filho sozinha é entrar num labirinto, é pisar em areia movediça, é aprender a rezar todos os dias. É contar com a ajuda de toda a milícia celeste. É ver o rosto de Deus e conversar diretamente com Ele, sem dogmas, sem doutrina, mas sabendo que Ele está por perto.

Confessa, de mãos postas, que fez aborto, mas que a culpa não é só dela. O homem diz não primeiro. É um aborto masculino também. O parceiro aborta antes toda a esperança de vida, do amanhã, da luz. O homem aborta a vida antes da mulher. Ele não quer o fruto do prazer, do gozo, da emoção que escorre pelo corpo todo. E a mulher não sabe o que fazer, porque terá que correr sozinha todos os riscos.

Assim, ela foi mãe do único filho. Trinta e quatro anos depois, ele está aí para provar que ser mãe é receber um presente divino. Apesar de todas as dificuldades, ser mãe é degustar a vida passo a passo, é acreditar no futuro e em todos os milagres do dia a dia. É perdoar-se e compartilhar a fé num mundo novo, menos caótico e violento com seus fiéis.

Ela confessa que ao ouvir as palavras do papa Francisco, em 2015, redimindo as mulheres que praticaram aborto, deu graças. Ele é o papa que vem desmontando a Igreja falsa do Vaticano. Toma atitudes que têm a ver com os poucos grandes homens do século 21. Ele sabe que a excomunhão tira das mulheres o alimento espiritual.

Nesse contexto caótico, Francisco afirmou que “o drama do aborto é vivido por algumas com uma consciência superficial, quase sem se dar conta do gravíssimo mal que um gesto semelhante comporta. Muitas outras, ao contrário, mesmo vivendo esse momento como uma derrota, julgam que não têm outro caminho a percorrer”. O papa dedicou atenção especial às mulheres que recorreram ao aborto. “Conheço bem os condicionamentos que as levaram a tomar essa decisão. Sei que é um drama existencial e moral. Encontrei muitas mulheres que traziam no seu coração a cicatriz causada por essa escolha sofrida e dolorosa. O que aconteceu é profundamente injusto - sublinhou o papa - contudo, somente a sua verdadeira compreensão pode impedir que se perca a esperança”.

Confessa que quase 40 anos depois tirou o peso das costas e agradeceu: “Perdoai, papa Francisco, pelos pecados cometidos e por todos os que ainda vai cometer. Perdoai, Francisco, por todas as culpas católicas que cultivou, perdoai pela tortura do aborto. Pelos pecados cometidos pela Igreja Católica. Pelas mulheres que foram queimadas na fogueira da Inquisição. Pela difícil tarefa de ser mulher num mundo masculino. Perdoai as mulheres pelo risco do aborto clandestino e em condições adversas, responsável pela terceira causa de morte materna no país. Pois uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já recorreram ao aborto.

Inspirai e soprai aos ouvidos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) - que agora têm nas mãos os relatórios de duas audiências públicas - que aborto não é crime. Como nossas irmãs da América Latina que também lutam pelo acesso universal ao aborto legal, seguro e gratuito. Assim seja!”.

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente