"Tô pronto! Para qual casa eu vou?"

A posse dos cães por seus donos está sendo disputada nas varas de família, conquistando na maioria das vezes a guarda compartilhada, onde ficam tempos com um e com o outro

por Déa Januzzi 20/08/2018 13:00
Ilustração/EM
(foto: Ilustração/EM)

O título acima vem acompanhado da imagem de um cão com a mochila nas costas, pronto para se mudar de casa. Em seguida, um pequeno texto: “Casal em separação judicial deve dividir guarda do cachorro de estimação. A mulher recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) após seu pedido de guarda ou visitas ao cão ser negado”. Deu na página do Facebook do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Casos assim estão virando rotina na vida das famílias brasileiras e ninguém melhor do que uma escritora para contar a história de Fidel, o ex-cão.

“Uma noite, quando Elaine tricotava, sentada na frente da televisão, pedi o divórcio. Ela não desviou o olhar do tricô e disse apenas: ‘Tudo bem. Eu lhe darei o divórcio, Lucas. Mas deixe o Fidel comigo’. Concordei. Meu coração doeu, apertado. Deixar Elaine não era difícil. Mas largar Fidel para trás, aí já era uma outra história. Demorei alguns dias para me acostumar com a ideia de não vê-lo mais. Aos poucos, fui ficando cada vez menos tempo com ele, tentando me desapegar. Ele percebeu a mudança nas minhas maneiras e, depois de alguns dias fazendo exigências de todo tipo, foi se desinteressando de mim.”

Personagem de Os mesmos e os outros: O livro dos ex, um dos contos preferidos da autora Ana Cecília Carvalho, escritora, psicanalista e apaixonada por cães, Fidel é o retrato do mundo contemporâneo, onde os bichos de quatro patas são integrantes da família. Nas novas configurações familiares há disputas judiciais pela guarda desses animais, que deixam de ser “objetos” no momento da dissolução da sociedade conjugal.

A posse dos cães por seus donos está sendo disputada nas varas de Família, conquistando na maioria das vezes a guarda compartilhada, onde ficam tempos com um e com o outro. O casal divide as despesas com alimentação, veterinário, medicamentos e tudo o que estiver na lista de necessidades do cão. Sobrinha e advogada, Valéria Januzzi Teixeira me mandou vários casos de disputa entre donos e cães nos tribunais.

O cenário de afeto entre cães e humanos vem sendo construído nos últimos anos, apesar de não existir um embasamento jurídico. O que se faz é uma analogia. “Para muitas pessoas, os animais são integrantes da família e não podem mais ser tratados como objetos em caso de separação”, sentencia o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, especialista em direito de família e sucessões.

A história de Fidel, do livro de Ana Cecília Carvalho, já em segunda edição, pela Quixote-Do Editoras Associadas, é de arrepiar. É preciso dizer que o nome do cão não vem do líder cubano Fidel Castro, já falecido (13/8/26 - 25/11/16), mas da palavra que qualifica o animal - fidelidade!. Os mesmos e os outros é, sem dúvida, o melhor livro que li em 2018.

Peço licença à Ana Cecília para publicar só trechos do conto, porque ela mesma não faria essa difícil escolha. As palavras vão levando a escritora a mostrar algo que ela sabia sem saber. “É sempre uma surpresa e um susto, pois às vezes o que eu sabia era terrível. E não é à toa que estava desconhecido dentro de mim. As histórias não são preconcebidas. Confio em que as palavras sabem onde me levar. É um caminho que vai sendo construído até que a revelação se dá pela escolha das palavras. Não sei de antemão o desfecho, por mais que eu tenha planejado.”

A amargura de Fidel - ao ser deixado para trás por tirania e pirraça da ex-mulher - retrata a realidade atual, em que os casais têm cães no lugar de filhos. No trecho final do conto, Fidel dá adeus ao ex-dono do seu jeito: “Quando eu voltava do trabalho, ele se refugiava na área de serviço, como a me evitar. Como Elaine e eu passamos a dormir em quartos separados, enquanto eu procurava um apartamento na cidade para onde iria me mudar, notei que Fidel deixou de me acompanhar na hora de dormir. Seu cobertor permanecia vazio à noite. De manhã, quando eu acordava, via que ele tinha dormido em algum lugar na sala, ou até mesmo na cozinha. Ao me ver, desviava o olhar. Compreendi então que Fidel estava se preparando para se separar de mim. O carreto chegou com atraso, no fim da manhã. A chuva caía ainda, mas menos forte. Não vi Fidel em nenhum momento enquanto ajudava os rapazes a levar as caixas para a caminhonete. Quando voltei para trancar a porta e deixar a chave debaixo do vaso de planta, notei que Fidel olhou rapidamente na minha direção. Em seguida, virou de costas para mim. Meu ex-cão”.

A história que envolve a capa do livro também é de arrepiar. Um cão sozinho na rua, símbolo do abandono, depois de um vendaval no Texas, Estados Unidos. Sensibilidade e intuição fizeram Ana Cecília Carvalho se desdobrar, ao descobrir a foto impactante no Google, que a levou a milhares de imagens de cães na chuva.

Enquanto ouvia o guitarrista Pat Metheny em um vídeo do YouTube, Ana se deparou, por acaso, com a foto de um cachorro sozinho na chuva, ilustrando a música. Ana acabara de escrever a primeira versão do livro e teve a certeza de que aquela foto retratava perfeitamente a atmosfera do livro.

Ela então enviou uma mensagem para o dono do canal no YouTube, mas essa pessoa nunca a respondeu. Até que encontrou o nome do fotógrafo, Jerry Lara, autor da foto, e do jornal em que ele trabalhava, no Texas: San Antonio Express News, a 40 milhas de onde ela e o marido, o americano Hal Reames, passam seis meses por ano, dividindo o restante com Belo Horizonte, cidade de origem de Ana.

A escritora ligou para o jornal para saber sobre os direitos autorais cobrados pelo fotógrafo. Informada de que era a agência Zulma Press que negociava para Jerry Lara o direito de reprodução, Ana escreveu um e-mail para ele. Dois dias depois, ela recebeu a resposta de que seria cobrado um valor simbólico. A foto chegou por e-mail, em alta resolução. Ana conseguira a foto para a capa do livro Os mesmos e os outros.

Ao lançar o livro, em janeiro deste ano, Ana separou um exemplar para o fotógrafo americano. Voltou para o Texas e marcou um encontro com ele para entregar o livro pessoalmente. Marcaram num bar chamado Cafezinho, entre San Antonio e Texas, quando se abraçaram e se encantaram. Jerry contou a Ana e Hal que, depois do vendaval, vários cachorros estavam abandonados na rua. Ele registrou aquele cão da raça labrador em especial. Ficou sabendo que Jerry gosta dos detalhes na multidão. Hoje, está fotografando os filhos separados de seus pais na fronteira com o México. Com a sensibilidade que lhe é característica, dá para imaginar a beleza dessas fotos. Dias depois, a foto chega em Austin, pelo correio. Ana abre e quase desmaia. A foto em tamanho grande de Fidel foi emoldurada e ficará para sempre guardada no coração de Ana Cecília.

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente