Procedimentos estéticos realizados por não especialistas têm causado mortes e confusão

Assunto foi para na Justiça. Afinal, o que pode trazer mais segurança na corrida pela beleza?

por Laura Valente 20/08/2018 14:15
Jair Amaral/EM/D.A Press
"Agir por impulso, motivada por propagandas de custos baixos, pode ser um 'barato que sai caro'. Além disso, devemos nos ater sempre se há uma necessidade real da intervenção%u201D - Priscila Tereza de Carvalho Ribeiro de Paula, advogada, de 29 anos, que já fez vários procedimentos estéticos (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

A oferta de procedimentos estéticos inovadores, aliados ou não às cirurgias plásticas, tem provocado verdadeiro frenesi na sociedade contemporânea, cada vez mais interessada em moldar a própria imagem de acordo com os padrões de beleza que apontam para o corpo perfeito e a manutenção da juventude.

No entanto, uma combinação perigosa no país, que envolve uma legislação confusa e um mercado em que médicos não especialistas e profissionais que não têm licença para atuar no segmento se dizem aptos, traz riscos para a saúde de quem procura tratamentos como preenchimentos e aplicações de substâncias: botox, ácidos hialurônicos, metacril (ou PMMA), hidrogel e outros. Vide tragédias recentes com as mortes da bancária Lílian Calixto - caso que culminou na prisão de Denis César Barros Furtado, o Dr. Bumbum - e a da modelo Mayara Silva dos Santos, cuja responsabilidade está sendo investigada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, entre outros.

Enquanto isso, em verdadeiras batalhas judiciais, órgãos como o Conselho Federal de Medicina e as sociedades brasileiras de Cirurgia Plástica e de Dermatologia têm empreendido ações para impedir que profissionais de outras áreas, como biomedicina, enfermagem, odontologia e farmácia, tenham licença para executar procedimentos estéticos considerados invasivos. Num cenário confuso, pessoas adeptas aos tratamentos estético,s como Priscila Tereza de Carvalho Ribeiro de Paula, advogada, de 29 anos, vaidosa confessa, tentam se cercar de cuidados para evitar riscos. Ainda assim, o perigo está à solta e se faz sedutor em propagandas nas redes sociais ou na oferta de custos mais baixos que os praticados por especialistas. A seguir, colocamos em discussão o assunto que está assustando muita gente.

"A vida vale mais que qualquer coisa"
Avaliar a segurança dos procedimentos estéticos, conhecer o tratamento proposto e conversar com o profissional sobre expectativas x realidade são fundamentais

A fala que dá título à página é de Manuela Paula Costa Rodrigues, empresária, de 38 anos, mulher supervaidosa que já fez vários procedimentos estéticos. “Querer sempre melhorar é o que me leva a buscar as intervenções, estar bem com minha autoestima”, afirma.

Túlio Barros/Divulgação
Manuela Rodrigues fará implante de silicone nos seios pela quarta vez (foto: Túlio Barros/Divulgação)
Tanto que, insatisfeita com a imagem atual dos seios, ela está em processo de pesquisa para definir qual será a melhor opção para implantar prótese de silicone pela quarta vez.

“Da primeira vez coloquei pouco, depois aumentei, daí quis colocar embaixo do músculo e, agora, quero dar uma repaginada. Encontrei preços variando de R$ 6 mil a R$ 18 mil. No entanto, não decido pelo custo, mas, sim, após conversa com o médico, sendo que, antes mesmo de marcar a consulta, busco indicações, consulto os sites de classe especializados e até os jurídicos para saber se há reclamações formais contra o profissional. Só vou em médico que investiguei e até hoje fiz as intervenções sem medo, tranquila, segura. A questão não é de preço, mas de preocupação com a saúde e com um bom resultado.”

A franqueza na relação médico e paciente é outro ponto avaliado por ela. “Como não quero retirar a pele dos seios, ainda não consegui fechar a cirurgia, pois o médico que visitei disse que seria possível garantir apenas 20% do resultado com a minha ressalva. Também queria fazer uma lipo, mas ele contraindicou, dizendo que não preciso. Ou seja, senti confiança na fala dele, vi que não estava interessado em vender gato por lebre. Com isso, estou avaliando qual será a melhor solução para ficar o mais satisfeita possível.”

Apesar de já ter realizado procedimentos sem a ajuda de dermatologista e cirurgiões plásticos - bichectomia com cirurgião-dentista bucomaxilofacial e blefaroplastia (cirurgia de pálpebras) com médico oftalmologista -, ela ressalta que buscou as melhores indicações e que não aprova o fato de profissionais de outras áreas atuarem em procedimentos estéticos invasivos. “Considero um absurdo os recentes casos envolvendo as mortes da bancária e da modelo, pois a vida vale mais do que qualquer coisa. Se a pessoa quer melhorar a aparência, precisa buscar um bom profissional, realizar o procedimento em local especializado. Mais ou menos não dá, pois é uma decisão que pode acabar mal, em deformação e até mesmo em óbito.”

A importância do RQE

Manuela vai bem, obrigada. Mas, segundo cirurgiões plásticos e dermatologistas ouvidos pela reportagem, pessoas que realizam procedimentos estéticos com não especialistas, incluindo aí médicos que não têm o Registro de Qualificação de Especialidade (RQE), assumem um grande risco para a saúde. “A cultura de exposição nas redes sociais e a demanda cada vez maior por atingir um padrão de estética, muitas vezes irreal, tem promovido uma busca cada vez maior por intervenções estéticas, sejam cirúrgicas ou não. O que a maioria das pessoas subestima é que todo procedimento estético tem um risco envolvido, e pode gerar complicações que só serão revertidas ou amenizadas com segurança pelo médico especialista naquela região do corpo”, alerta Lucas Miranda, dermatologista, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). Assim, ele tem convicção de que óbitos como os da bancária Lílian Calixto e da modelo Mayara Silva dos Santos poderiam ter sido evitados.

“A Lei do Ato Médico (Lei 18.842/13) determina que os tratamentos invasivos, ou seja, aqueles que ultrapassam a barreira da pele, só podem ser realizados por médicos. Alguns conselhos de outras profissões emitiram pareceres próprios no passado autorizando seus integrantes a fazerem alguns procedimentos estéticos invasivos, mas essas resoluções não podem se sobrepor à lei. Portanto, todas elas têm sido repetidamente caçadas na Justiça. Além da questão legal, é o médico (mais especificamente cirurgiões plásticos e dermatologistas) que tem a formação técnica adequada para executar com segurança os tratamentos estéticos invasivos e, ainda mais importante, identificar e tratar as possíveis complicações”, completa o cirurgião plástico Pedro Nery Bersan, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

Efeito irreversível

Ainda segundo os médicos, outro ponto importante a ser observado no caso de preenchimentos, mesmo os minimamente invasivos, é o tipo de substância usada. Exemplo vem de episódio vivido pela atriz Betty Faria, de 77. Ela conta que há alguns anos o organismo reagiu mal à aplicação de metacril (produto sintético, composto por microesferas de acrílico e que pode causar deformações, muitas vezes irreversíveis), procedimento realizado pela dermatologista Doris Hexsel. “Fiquei um monstro, com o rosto cheio de bolotas que mudavam de lugar. Recorri ao Ivo Pitanguy, que fez cirurgia para tentar reverter o problema. Ainda assim, só voltei ao normal cerca de trê anos depois, quando realizei um tratamento de saúde com cortisona e o medicamento ajudou a ‘derreter’ a substância. Depois disso, nunca mais fiz procedimento nenhum, tomei trauma.”

O dermatologista Lucas Miranda comenta o caso da atriz: “É preciso lembrar que existem tipos diferentes de preenchedores no mercado, os permanentes e os não permanentes (ou absorvíveis). Exemplos de permanentes vêm do metacril (também conhecido como PMMA) e do hidrogel (ou gel de poliamida), que podem causar obstrução vascular (nos vasos sanguíneos), necrose de pele e cegueira, entre outras complicações. Ou seja, são muito perigosos. Tanto que médicos especialistas e atualizados não os usam”.

Em contrapartida, diz, “um preenchedor absorvível como o ácido hialurônico é mais seguro pelo fato de existir um antídoto para ele (a enzima chamada hialuronidase), que tem a capacidade de diluir o produto e reverter um quadro de complicação”. O médico ainda cita outros problemas causados pelo uso de preenchedores permanentes como edemas recorrentes, alergias e reações ocasionais. E alerta: “Não existem testes para verificar a tolerância de um paciente ao produto. Logo, médicos sérios não usam preenchedores muito imunogênicos, de qualidade baixa, caso de substâncias como PMMA, hidrogel e silicone industrial. Hoje, considero o ácido hialurônico o preenchedor mais seguro do mercado”.

É fundamental se sentir segura
Num cenário de boom na oferta de tratamentos estéticos, profissionais de saúde de diferentes áreas entram no filão. A Justiça é acionada, mas muitas vezes o consumidor, confuso, se arrisca

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
O botox é uma das intervenções não cirúrgicas mais procuradas em consultórios (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

“Creio que toda mulher é vaidosa, e não sou uma exceção. O primordial é se sentir bem consigo mesmo e isso inclui a aparência”, afirma Priscila Tereza de Carvalho Ribeiro de Paula. Advogada, de 29 anos, ela é adepta de cuidados estéticos que incluem limpeza de pele, depilação a laser e massagem redutora. Também já recorreu à cirurgia plástica. “Há seis anos, coloquei prótese mamária (bem naquela época em que silicones estavam estourando), por questão puramente estética, visto que meus seios eram pequenos”, conta.

E aderiu, ainda, à bichectomia (retirada da bola de Bichat - gordura que fica na bochecha - para deixar o rosto mais fino) e à aplicação de botox nos lábios, o primeiro um procedimento que vem sendo alvo de disputa entre entidades de classe da medicina e da odontologia. Priscila, por exemplo, fez o procedimento em escola de cirurgiões-dentistas. “Por acaso, vi uma propaganda nas redes sociais que anunciava uma pós-graduação para cirurgiões-dentistas na área de estética facial e procurava pacientes-modelos. Sim, fui uma ‘cobaia’ (risos).”

Apesar da polêmica em torno da bichectomia, ela afirma que a cirurgia não teve apenas justificativa estética. “Recebi a indicação de um dentista, visto que tinha problema na mordedura e constantemente feria a parte interna da bochecha.” Priscila revela que a recuperação foi bastante semelhante à de retirada de um dente siso, e que se sentiu segura após verificar o histórico dos profissionais.

“Fiz a bichectomia crendo que não iria ocorrer nada errado. À época, li na internet sobre riscos como paralisação facial e/ou a possibilidade de a cirurgia afetar a salivação. No entanto, acredito que os riscos existem em maior ou menor grau em todos os procedimentos, mesmo os não estéticos. Então, agendei uma visita, conheci os profissionais e o lugar, procurei recomendações e verifiquei se os professores acompanhavam todo o procedimento. Como senti segurança e confiança, fiz a cirurgia, além de botox nos lábios.”

Embora o conselho de médicos especialistas seja bom, nem sempre é seguido à risca. “É obvio que se minha condição financeira fosse melhor, procuraria um profissional renomado e particular, porquanto a segurança seria ainda maior, sem contar a facilidade de atendimento e retorno quanto a dúvidas e precauções”, reconhece Priscila.

A advogada conclui: “É preciso pesquisar! Agir por impulso, motivada por propagandas de custos baixos, pode ser um ‘barato que sai caro’. Além disso, devemos nos ater sempre se há uma necessidade real da intervenção, avaliar condições financeiras (pois não é só o procedimento, temos o pré e o pós-operatório - com exames e medicações que usualmente são caros), os profissionais que sejam realmente capacitados, o lugar em que o procedimento será realizado, riscos e benefícios (até porque, muitas vezes, o benefício é mínimo para um risco tão alto), além da possibilidade de arrependimento visto que a reversão muitas vezes se torna impossível”.

Entre os médicos

O médico Sérgio Leite, presidente da Associação Brasileira das Clínicas de Cirurgia Plástica (Abraccip), alerta: “Estamos no Brasil, país que detém a segunda maior sociedade de cirurgiões plásticos do mundo, com o respeito de toda a comunidade internacional. No entanto, há pessoas como o Dr. Bumbum, que fazia bioplastia nos glúteos sem especialização adequada, o que considero resultado de vários equívocos, incluindo aí a ânsia do não especialista pelo ganho financeiro”.

O cirurgião aponta uma lei defasada, de 1957, “quando o conhecimento científico era diferente e o acesso ao especialista era limitado”, como um dos gatilhos do problema. “Há uma permissividade no país em que qualquer profissional médico pratique ato clínico ou cirúrgico, sendo ele especialista ou não naquela área, mesmo se tratando de uma cirurgia eletiva.” E acrescenta: “Também o desejo de serviços de baixo custo por parte dos pacientes aproxima os dois lados, criando assim a receita da tragédia e dos conflitos. Exercer uma especialidade sem de fato tê-la é uma insanidade”, afirma.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica alerta ainda para o fato de cerca de 12 mil pessoas sem qualificação realizarem cirurgias no Brasil, o que coloca seus pacientes em risco de deformidades, erros irreversíveis e até morte. “Antes de contactar um profissional, faça uma pesquisa junto à Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica”, insiste. O médico lembra ainda que toda cirurgia prevê riscos, e garante que apenas um profissional preparado poderá minimizá-los. “Todo e qualquer procedimento médico está sujeito a complicações. A obrigação do especialista é fazer o melhor da ciência para atingir os objetivos previstos, sem contudo, garantir o sucesso absoluto.

Enquanto isso... ...Viúvo processa academia

Bruno Corrêa é viúvo de Flávia Oliveira, falecida em abril de 2016, aos 37 anos, devido a falência do fígado, “resultado de abuso de anabolizantes em processo chamado bodybuilding”, justifica, chamando a atenção para o perigo de “buscar a imagem a qualquer preço”. Em resumo, ele conta que ela começou a usar produtos que, apesar de proibidos no país, eram vendidos na academia que frequentava em BH, cujo proprietário e o personal ele aciona na Justiça. “O problema continua ocorrendo, numa cenário semelhante ao do tráfico de drogas comum. Depois de ser apresentada aos anabolizantes que ‘ajudam a modelar o corpo’, segundo os que comercializam inclusive via internet, Flávia se tornou dependente química da substância e da própria imagem (sintoma de vigorexia)”, lamenta. Flávia deixou duas filhas e um enteado. Bruno se casou novamente e vai reconstruindo a vida após o trauma, mas o processo segue na Justiça, enquanto a academia permanece em “plena atividade”. Fica o alerta: “Criou-se um estereótipo muito perigoso do que é beleza. A sociedade como um todo precisa parar e repensar o conceito de saúde, exigência, competição, o conceito de beleza deturpado. Pessoas estão morrendo”.

Mateus Ferreira/Divulgação
(foto: Mateus Ferreira/Divulgação)
Entrevista:

Pedro Nery Bersan - Cirurgião do Hospital Madre Teresa e membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica

“Informação é diferente de conhecimento”


Em relação a substâncias permitidas para preenchimentos e as quantidades aplicadas, quem regula e quem fiscaliza no Brasil?

A Anvisa é a responsável por liberar o uso das substâncias, mediante parecer técnico das sociedades brasileiras de Cirurgia Plástica e de Dermatologia, que orientam seus associados sobre o que usar, onde e em qual quantidade. A fiscalização dos produtos e das instalações onde são feitos os tratamentos também fica a cargo da Anvisa, que visita sempre os consultórios médicos e controla a qualidade das fábricas. No entanto, a enorme maioria dos casos em que vemos complicações sérias é realizada por não especialistas (muitas vezes nem médicos!) e em locais clandestinos.

O que o consumidor/paciente precisa saber antes de se submeter a tais tratamentos?

O paciente deve sempre considerar três fatores: a formação do médico (é fácil verificar nos sites do CRM, da SBCP e da SBD se o profissional é realmente habilitado), o local do procedimento (consultório médico adequado ou instalação hospitalar) e a qualidade do produto (se tem registro na Anvisa e é indicado para o tratamento que ele deseja).

O que justifica, mesmo diante de tanta informação, casos como o da bancária Lílian Calixto?

Infelizmente, informação é diferente de conhecimento, e, muitas vezes, os pacientes são induzidos a confiar em informações falsas. As mídias sociais têm um importante papel em divulgação, mas não são parâmetro da qualidade e nem da formação do profissional. A formação de um cirurgião plástico demora, no mínimo, 11 anos e é essa formação que garante qualidade e segurança do tratamento, não apenas um Instagram bonito. Para se avaliar isso, basta consultar o registro do profissional nos sites das sociedades, como mencionei antes, e também ficar atento ao teor ético das postagens de cada página.

Por que o sr. acredita que há um aumento tão expressivo na busca por tais procedimentos?

Os procedimentos estéticos pouco invasivos, como preenchimentos e botox, têm crescido porque melhoraram muito em qualidade nos últimos anos, e passaram a ser uma excelente opção para pacientes que ainda não precisam ou não desejam passar por uma cirurgia, mas mesmo assim estão preocupados em manter uma aparência jovem e cuidar do próprio corpo. Costumo dizer que o rejuvenescimento facial começa já na juventude, com a prevenção das rugas e cuidados com a pele, e vai subindo uma escadinha das várias opções de tratamento que temos à medida que o paciente envelhece, até a cirurgia. Os novos produtos adicionaram muitos degraus a essa escada.

Quais são os riscos de contratar um serviço mais barato, negligenciando as credenciais do “profissional”?

Arriscar a saúde, e penso que as pessoas não deveriam estar dispostas a pagar um preço tão alto. Apenas os médicos especialistas, em ambiente seguro e adequado, serão capazes de diagnosticar e tratar as complicações possíveis – que apesar de raras precisam ser abordadas adequadamente. Abrir mão dessa segurança significa aumentar muito os riscos à saúde e se expor a problemas graves, como temos visto na mídia. Não vale a pena correr esse risco em nenhuma circunstância.