Coração de mãe: Aqueles olhos verdes

"Tentei dizer para ela como é difícil para uma mulher sozinha criar filhos, sem a presença do pai. Falei que filho tem direito de ter pai e mãe"

por Déa Januzzi 06/08/2018 07:00
Lelis/Ilustração/EM
(foto: Lelis/Ilustração/EM)

Comunico aos meus amigos, amigas e leitores fiéis que sou avó desde o dia 23 de julho. Vieram nove de uma vez, um dia antes da lua cheia que encharcou a Terra de luz e sombra. Um pouco antes do eclipse que trouxe as energias da lua de sangue.

Eram 20h30m quando a bolsa arrebentou deixando um rastro de água pela casa. Apavorada, liguei para Waninha, minha vizinha, com quem tenho guarda compartilhada.

Ela veio correndo com máquina fotográfica em punho e olhos enluarados, embriagados de vida. Quando o primeiro nasceu, quis correr para longe. Nunca tinha participado de um ritual desses. Quando meu filho estava para nascer, apavorada, disse para Amélia - minha mãe - que não estava preparada. Com a sabedoria que só as mães têm, ela riu com o canto da boca e disse: “Agora não tem mais jeito”.

A magia estava só começando naquela noite. Depois do primeiro, nasceram mais oito, com pequenos intervalos. Assessorada por Waninha e por Joelma, a outra amiga da Serra do Cipó, que dizia em áudio no WhathsApp: “É doido demais, não é gente? É muito bonito esse processo. É a natureza exercendo sua força maior. O bicho é só no instinto. Quase lua cheia, teve os filhotes num céu lindo desses - e todos pulando para fora. Parabéns vovós e titias!”.

Responsável por me ter "obrigado" a adotar Mel, uma cachorra vira-latas que estava abandonada na rodovia principal da Serra do Cipó, Waninha também é culpada por me permitir presenciar esse momento único do nascimento de uma ninhada de nove filhotes.

O ritual solene durou mais de duas horas, sob as bênçãos da Lua. Mel não pediu ajuda. Fez tudo sozinha: pariu, cortou o cordão umbilical e limpou cada um de seus filhotes. Comeu a placenta, fez a faxina completa do abrigo de papelão e amamentou como a Mãe-Natureza ensinou.

Embevecidas, Waninha e eu brindamos com a tal de “mixirica candongueira”, como dizem os nativos - e uma dose de vodka para celebrar evento tão importante. Rimos como duas bobas que acabavam de ser avós. Mel nem aí para nós. Só tinha olhos e carinho para os filhotes.

É preciso dizer que adotei Mel a contragosto. Não queria mais cachorro depois da morte de Frida, a Lhasa Apso que me acompanhou durante 12 anos. Cachorra de raça, Frida era brava e mordia a dona e as visitas que chegavam na casa. Jurei para mim mesma que não queria mais bicho nenhum. Frida foi embora em dezembro de 2016 e deixou um rastro de tristeza na minha alma e pela casa, em todos os cantos. Jurei que dali para frente, cachorro só o do vizinho, mas caí na tentação daqueles olhos verdes da Mel, tristes, de acordo com o meu jeito de ver.

Acostumada com as ruas da Serra do Cipó, Mel fugiu nos primeiros tempos. Furava buracos inimagináveis de passar e sumia. Xinguei, vociferei sobre a decisão de adotá-la, quis devolvê-la. Mas para quem? Waninha estava perdida com o meu desespero. Meu filho me dizia “cachorro dá trabalho, gasta dinheiro, prende a gente, agora aguenta” – Ah, meu Deus, o que faço agora? Mel ficou e foi seduzindo todos em casa. Doce, serena, ela se agarrou a mim. Amor conquistado por aqueles olhos verdes. Mas deu trabalho no princípio, comia colchas, lençóis, sapatos do filho e até minha camisola preferida.

Depois das vacinas, da compra de ração, dos banhos, da idade prevista por Orlando, o farmacêutico que é uma espécie de veterinário por esses lados, Mel se juntou à família de mãe e filho - que também se rendeu à ternura dela.

Tudo corria bem, quando a jovem Mel entrou no cio, ai, meu São Francisco, santo protetor dos animais, invoquei! Mais preocupada comigo do que com a Mel, Waninha mandava mensagens sobre o ciclo das cachorras, vídeos e áudios incríveis sobre essa época, mas nada me convencia. Do seu front, ela me pedia para deixar Mel presa porque uma fila de cães já se formava à minha porta. Nunca vi uma cachorra tão requisitada, com os hormônios se espalhando pelas redondezas. Deixei de passear com ela, pois não conseguia conter os machos caninos. Nem a varinha de bambu cedida gentilmente por Waninha - e levantada como uma bandeira no ar para espantá-los - funcionou.

Fiquei brava com Mel, mas ela não estava nem aí para meu blá-blá-blá. Certa noite, fugiu não sei como. Por instinto animal achou uma brecha na cerca e desapareceu. Ao amanhecer, vi que tinha passado a noite fora. Ninguém a encontrava, até que meu filho achou a danada exausta na porta da padaria e a trouxe para casa, toda arregaçada. Ela se esbaldou. Teve uma noite de sexo e fúria. Chegou como se nada tivesse acontecido, comeu até falar chega, deitou e dormiu o sono das deusas.

Saí de casa furiosa atrás dos cachorros, protestei contra os machos que montavam guarda na minha porta, expulsei-os de lá e fiz longo discurso contra o instinto animal de homens e cães - e Mel dormia de olhos fechados, nem aí para mim, curtindo a longa noite de amor.

Tentei dizer para ela como é difícil para uma mulher sozinha criar filhos, sem a presença do pai. Falei que filho tem direito de ter pai e mãe. Que pai faz falta e quanto mais eu falava mais ela se ajeitava. Achei até que ela tinha piscado um olho para mim, que minha fala embalava ainda mais o seu sono. Tenho que admitir que um dos cães que cruzou com Mel ainda permanece na ossa rua. Mas ele é livre. Só entra na casa da vizinha para comer e dormir ao fim do dia. E que, às vezes, ele se aproxima da Mel, cheira, cheira e vai embora. Não é por menos que seis dos nove filhotes de Mel têm a mesma cor do pai.

Por favor, leitores, não pensem que vou ficar com a ninhada toda. Waninha já deu início ao processo de adoção dos filhotes, que terão casas e donos acolhedores.

Juro, ao fim desse texto, que ter um cão faz bem para a saúde de todos, sejam crianças, jovens, adultos, velhos. São terapeutas do bem, remexem e percebem quando dos olhos da dona escorre uma lágrima. Aí, eles não saem de perto até que a alegria esteja de novo no ar. Mel hoje é um anjo que me guarda, me rege, me protege e me ilumina. E faço uma declaração pública: "Bendita Waninha!".

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente