Como me livrei do vício: confissões de uma ex-dependente

"Sou repórter e sempre vou olhar para as pessoas e suas histórias com emoção. Sempre procurei um lugar dentro de mim que retratasse a poesia que há em tudo"

por Déa Januzzi 23/07/2018 13:00
Ilustração/EM
(foto: Ilustração/EM)

Estou limpa, livre dessa droga alucinante há 18 meses, desde que me mudei para a Serra do Cipó. No começo, tive síndrome de abstinência, queria voltar correndo para Belo Horizonte, tive calafrios, febre, torpor, mas aguentei firme. Até tive algumas recaídas, mas assim que abria as janelas e as portas da casa, a cura vinha com o cheiro de mato, com o bando de maritacas voando, de mico-estrelas pulando de um galho para o outro como se fossem pássaros. As flores então me nutrem de beleza e esplendor. Estou rodeada de presentes da natureza. Meus olhos são borboletas iluminadas, janelas para um mundo novo que eu não conhecia nem desfrutava.

A magia não termina com o passar do dia nem das estações. Fico ligada 24 horas nesta paisagem. As árvores abrigam todas as frutas, algumas que nem conhecia, como cajá-manga. Há ervas para um sono tranquilo, outras para despertar a consciência, para fazer chás, temperar comidas, acalmar a mente, alegrar o coração. Doses certas para equilibrar corpo e alma, principalmente quando você conhece uma das raizeiras da região de nome Piedade, nativa, filha de índia, dessas mulheres que falam assim: “Minhas plantas comem o que eu como”. Ela é interrompida por uma mãe com um bebê no colo para benzer, porque ele não dormiu a noite toda. Piedade benze e o bebê sorri para ela. Agora é sentar e esperar que ela prepare um bálsamo para as suas dores.

Esperem um pouco, até que eu possa contar como me livrei de uma droga pesada. Foi no momento em que me mudei para a Rua Santana e conheci uma vizinha especial, a artista plástica Wânia Lage, de 54 anos, que enche meu universo e o dos moradores antenados da Serra do Cipó com arte em carimbos. São pássaros, borboletas, flores e folhas do cerrado, xícaras, bules, frases de Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Manoel de Barros, e tantos outros escritores e poetas que colorem a alma da gente e também as toalhas de mesa, panos de prato, guardanapos, roupas, echarpes, louças, canecas.

Waninha mora na minha rua e passar em frente à casa dela todos os dias é encontrar um paraíso perdido, uma ilha de paz, criatividade e encantamento. A casa dela é mágica, tem plantas, flores, vasos e telas em todos os cantos. Tem até composteira para o lixo orgânico - e se ficar atento, é bem provável que os duendes e fadas se escondam no jardim de Waninha. Você pode dar sorte de vê-los enquanto ela trabalha em seu ateliê ao ar livre.

Há 13 anos, ela escolheu a Serra do Cipó como morada. Vive sem controle remoto, TV aberta ou paga, livre de notícias ruins, dessa mídia televisa que estava contaminando o seu ser. Ficou livre do vício da televisão, com algumas raríssimas recaídas. Ex-dependente, ela conta: “Eu era superligada em televisão, companhia de todas as horas, principalmente quando estava me sentindo sozinha. Assistia à tevê dia e noite. Às vezes chegava uma visita e a tevê continuava ligada, tamanha a dependência. Outras vezes eu saía e quando voltava nem percebia que a televisão continuava ligada. Era vício mesmo”.

Ao mesmo tempo, Waninha percebia que estava dormindo mal por causa das notícias violentas. Tinha pesadelos à noite. “Novelas terríveis com personagens maquiavélicos, que despertavam o pior de mim, que cutucavam os meus demônios. A tevê destila ódio - e, do lado de cá, eu sentia ódio também. Estava usando essa droga sem saber, até que em uma das novelas globais um personagem jogou a sobrinha numa lata de lixo e eu fiquei alucinada, com muita raiva. Fui percebendo que aquela droga era tóxica demais, estava me deixando viciada, dependente, refém. Em julho de 2013, pedi a um vizinho para retirar a antena. No início, senti muita falta, mas resisti à tentação.”

Wania hoje está em outra sintonia, conectada com a natureza privilegiada da Serra do Cipó. Ela faz arte ouvindo música ou curtindo o silêncio cheio de significados. Ela se curou com banhos de rio e de cachoeira, observando as flores, degustando frutos do cerrado, transformando o lixo em arte. Hoje, ela garante que pensa com “minha própria cabeça”. Ela não precisa mais da maquiagem para preencher o vazio próprio do ser humano. Ela se desconectou do barulho externo e interno. Não precisa mais da esmola emocional que é a televisão. Está livre, se deu alta, não necessita mais dessa droga pesada. Todos os dias, ela injeta arte em sua vida. Mergulhada em tintas, pincéis e carimbos, Waninha prefere os sons da natureza - efeitos especiais para uma vida mais saudável.

Aos 65 anos, também me desconectei dessa droga. Só vejo o que quero e gosto, filmes e séries na Netflix e alguns noticiários, afinal, sou repórter e sempre vou olhar para as pessoas e suas histórias com emoção. Sempre procurei um lugar dentro de mim que retratasse a poesia que há em tudo. Nos 10 anos em que trabalhei no caderno Bem Viver, fiz reportagens sobre comida natural e sem veneno, terapias alternativas, complementares e harmonizadoras. Até que parei de trabalhar no mercado formal e vim para a Serra do Cipó, onde bato ponto na casa de pessoas que me ensinam todos os dias.

São muitas e se chamam Márcia, Lucimar, Ana, Lucineia, César - que veio de Morro de São Paulo, na Bahia, para cá e está escrevendo um livro a mão de mais de 600 páginas sobre as medidas do tempo. Ele mora lá no alto Palácio e foi o meu primeiro amigo por essas bandas. Tem Joelma, que faz o feijão cantar como a avó ensinou - tem Cori, que certas noites prepara a sobremesa preferida da personagem principal do filme O fabuloso destino de Amelie Poulain - o crème brulée, com fava de baunilha e caramelizado no maçarico.

Tem Magno, o primeiro e único ferreiro que conheço e que faz peças incríveis. Tem Déa, minha xará, que depois de viajar pelo mundo escolheu a Serra do Cipó como morada. Tem Renata, a fisioterapeuta que foi embora da serra para Canoa Quebrada e manda fotos de um outro paraíso. Tem Jackie, que faz uma geleia de mexerica de comer rezando. Tem dona Vicentina, com 100 anos e plena lucidez. Tem o Léo da padaria, que atende a todas as exigências e perdoa todos os meus pecados. Amém. E tem Brisa, uma menina de 2 anos que chega suave na minha casa querendo brincar.

Sei que a modernidade trouxe maravilhas, como medicamentos e exames de diagnóstico que podem fotografar até o sistema linfático, mas que perdemos as coisas preciosas que as avós nos ensinaram, o que resultou em doenças. O Código Internacional de Doenças (CID) hoje não é mais um livro, mas uma coleção deles, com novas doenças surgindo e o retorno de outras consideradas já erradicadas, como a febre amarela.

Aqui, na Serra do Cipó, todos têm quintais e hortas. Tem até o Mercadinho Tá Caindo Fulô, que acaba de completar três anos de vida, reunindo produtores locais e músicos e artistas que aprenderam com seus avós que eram mais sábios, pois observavam a natureza e não alteravam a genética das plantas. Tem até o resgate das Plantas Alimentícias Não Convencionais (as Pancs): beldroegas, lambari-da-horta, azedinha, taioba, ora-pro-nóbis, serralha.

Mas tenho de fazer uma confissão. Ainda sou viciada em livros, música, vinho, delicadezas e amizades verdadeiras. Quero ser eterna dependente. Viciada em poesia, cheguei inclusive a morar dentro de um poema da Adélia Prado, uma casa pintada de alaranjado. Uma casa que vivia sempre amanhecendo.

*Esta coluna é publicada quinzenalmente