Chá de bênçãos

"Pela primeira vez vai ser mãe, e nada como reunir as mulheres da família e as amigas chegadas para fortalecer o poder feminino"

por Déa Januzzi 09/07/2018 18:35
Ilustração/EM
(foto: Ilustração/EM)

Bento, de 8 anos, e Serena, de 4, não poderiam ter nomes mais apropriados. Vieram ao mundo de parto normal - ou natural, como a mãe prefere chamar. Vanessa Cardoso de Abreu, de 36, casada há 16, sempre soube que queria parto normal. Até que tomou conhecimento de que os partos hospitalares são tudo o que se pode imaginar, menos normais. Pesquisou na internet, e fuçou tudo o que estava ao seu alcance para conhecer os índices de cesariana realizados nos hospitais.

O Brasil ocupa o 2º lugar no mundo em percentual desse tipo de parto, só perdendo para a República Dominicana. Enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece em até 15% a proporção recomendada de partos por cesariana, no Brasil, esse percentual é de 57%. As cesarianas representam 40% dos partos feitos na rede pública de saúde. Na rede particular, chegam a 84%. Segundo estudos, grande parte das cesárias é realizada de forma eletiva, sem fatores de risco que justifiquem a cirurgia - e antes de a mulher entrar em trabalho de parto.

Vanessa estava decidida a ter Bento de forma natural. Não havia ninguém que a convencesse do contrário. Foi então que conheceu a Casa de Parto do Hospital Sofia Feldman e, em especial, a doula Poli do Amaral, que hoje não está mais lá, mas continua militante do parto humanizado.

Vanessa escolheu o Sofia Feldman para trazer Bento à vida. Depois de 26 horas de trabalho de parto, em que a doula teve papel fundamental, Bento chegou. Vanessa, então, decidiu que tinha que passar essa experiência positiva de parto para outras mulheres. Virou ativista, participando de rodas de gestantes em locais públicos, em que se contavam experiências de partos.Ela nem sabia da história de Kate Middleton, a duquesa de Cambridge, esposa do príncipe William, da Inglaterra, que ganhou a mídia internacional. Seis horas depois de ter o terceiro filho, Kate apareceu ao lado do marido bem-disposta, com cabelos escovados e de salto alto. “Não deixamos vocês esperarem muito”, brincou o príncipe ao lado dela e do filho, nos braços de Kate. Todos se perguntaram: que parto foi esse?. O segredo de Kate é bem simples: parto normal. Nem princesa nem plebeia. Apenas uma mulher que quer ser dona do próprio corpo e do jeito de parir. Vanessa ficou sabendo, então, que doula vem do grego e significa mulher que serve outra mulher. Fez o curso de doula no Isthar BH - Espaço para Gestantes, o melhor presente que já recebeu de uma amiga de verdade, de mais de 20 anos de convivência, que via a paixão e a alegria de Vanessa sobre o tema.

Em quatro dias de imersão, Vanessa aprendeu muito, que doula não faz parto, faz parte. Ela se debruçou com encantamento sobre a fisiologia do parto, técnicas de alívio da dor não farmacológicas, músicas para acalmar, óleos essenciais, massagens e outras informações baseadas em evidências científicas. Junto com as doulas sempre tem uma equipe de enfermeiras obstetras e os partos de maior risco são feitos por ginecologistas obstetras. Descobriu que quem faz o parto é a mulher, que passa a conhecer o próprio corpo. Ela é quem decide como vai ser na hora, do jeito que se sentir melhor, mais confortável: de cócoras, dentro da água ou de quatro apoios, na posição que o poder feminino fluir.

Por entender que o parto é fisiológico, é um evento familiar, Vanessa decidiu ter Serena em casa, sob a supervisão de uma doula. Vanessa entrou em trabalho de parto, mas a rotina da casa continuou a mesma. Bento, porém, faltou à escola, e o marido ao trabalho, para dar amparo. A bolsa rompeu à meia-noite e Serena nasceu às 19h.

Vanessa começou a atuar profissionalmente como doula este ano, na maternidade de Contagem, na Região Metropolitana de BH, com plantão voluntário das 19h de sábado às 7h de domingo. Atende também em domicílio e diz que as mulheres hoje estão cada vez mais interessadas no parto natural.

CENÁRIO DE LUZ

Para participar de um chá de bênçãos na Serra do Cipó, Vanessa cruzou meu caminho. Num domingo de sol, como só ocorre do lado de cá, quatro gerações de mulheres se encontraram para fazer a despedida da barriga de Luciana, de 33, que está na 37ª semana de gestação. O parto está previsto para o dia 16 e ela deseja que seja normal.

Luciana está plena, mas sabe que o momento do parto é de insegurança e medo. Pela primeira vez vai ser mãe, e nada como reunir as mulheres da família e as amigas chegadas para fortalecer o poder feminino. Luciana confia, pois só as mulheres entendem o que é parir. Do seu lado está Vânia Meira, a mãe, de 64. Luciana é a caçula de seus quatro filhos biológicos e mais dois do coração.

Juntas, em círculo, estão as irmãs, as amigas, a mãe e a avó materna, Maria da Anunciação, de 87, que, de 10 partos, teve sete normais, em casa, com parteira. A avó sonhava ir para o hospital para ter o bebê, pois achava que não doía. Teve a oportunidade e voltou em pânico. Doeu mais do que todos os naturais, fora o tempo que teve de ficar no hospital, longe de casa e dos familiares. Só viu o seu bebê 13 dias depois.

Numa roda, as 20 mulheres, entre avós, mães, filhas, irmãs, netas e bisnetas, cantaram, rezaram, abençoaram Marina, que chegará ao mundo em breve. A doula Vanessa regeu a orquestra de flores que foram chegando: uma braçada de camomila, alecrim-do-campo, que nasce na dureza das pedras e atrai as abelhas e, por isso, tem um incrível cheiro de mel perfumando tudo. Até Luciana ficou com cheiro de mel. Todas trazidas do alto da serra por Vânia, que também levou frutas para compartilhar com todas na hora do lanche. A irmã fez uma coroa com as flores para ornar a cabeça de Luciana, a outra trouxe óleos essenciais, a seguinte cantou, e todas rezaram para que ela tivesse uma boa hora, assim como para todas as ancestrais da família. Um varal de frases foi estendido na casa em que ocorria o ritual, com referências ao parto. Cada uma contou a sua experiência. A avó, Maria da Anunciação, abriu o encontro de mulheres abençoando Luciana e conversando ainda com Marina no ventre da mãe.

Luciana foi rodeada de bênçãos, sais de banho, ervas para o escalda-pés, massagens, até que todas se deram as mãos e passaram um barbante para selar a união. Cada uma saiu com um barbante amarrado no punho e que só vai ser desfeito depois do nascimento de Marina. A gestante, irradiando luz, tomou chá de naoli, desenvolvido por uma parteira mexicana para induzir o parto. Todas as mensagens do varal foram colocadas num pote de bênçãos que Luciana levará com ela para sempre.

Ela está preparada, pois sabe que a natureza é perfeita. Tem confiança de que Marina vai saber nascer. Ela saberá o que tem que ser feito. Ela saberá nascer e Luciana parir o bebê. E pronto. Se a maioria das mulheres tem medo do parto normal, Luciana aprendeu que, no mundo contemporâneo, tudo é desculpa para levar à cesariana. Há mensagens subliminares que aumentam a opção por cesariana, por medo da dor. Ela não é contra esse tipo de parto, caso seja necessário, quando é para salvar a vida da mãe e do bebê. Mas sabe também que gestação não é doença. Tanta opinião machista que Luciana descartou, como, por exemplo: “Você quer ir para o Sofria? Vai parir igual vaca?”. Coisas vulgares assim que não ajudam em nada. E que empurram as menos informadas para mais uma cesariana.

A doula morre de rir de todas essas bobagens e conta que um dia Bento chegou em casa e falou: “Mãe, a professora disse que os bebês nascem com o médico no hospital, porque tem que cortar a barriga”. Vanessa contradisse: “Diga à professora que só quando o bebê ou a mãe estão doentes é que tem que cortar a barriga para nascer. Você não nasceu da barriga da mamãe, mas da perereca”. Bento saiu satisfeito, porque tinha visto o parto da irmã, Serena.

Ao sair do Chá de Bênçãos, qual não foi a minha surpresa de encontrar Anelise Izabel, de 32, carregando a filha, Sara, com 44 dias de vida. Enrolada num cobertor, por causa do frio, Sara mamava no peito, enquanto Anelise entra no texto agora. Ela acaba de conhecer uma doula, na Santa Casa de Belo Horizonte, para ter Sara, com 44 dias de vida. A mulher chegou de madrugada, entre as contrações e os pedidos de socorro de Deus me ajude. E Deus enviou uma espécie de anjo que ajudou Anelise no seu mergulho. Até esqueceu o nome dela, “mas era como se minha mãe estivesse ali do meu lado, segurando a minha mão”.

Vanessa sabe o que Anelise está dizendo e pede para ler o texto de uma outra doula, Santusa Amaral, que diz tudo: “A doula não substitui o marido, nem a amiga, nem a mãe. A doula está lá para você, para amenizar as dores do corpo e, quem sabe, da alma. Ela te apontou o caminho, ajudou a escrever os planos de mergulho e falou da condição dos oceanos. A doula é sua; só sua. Ela está lá para se molhar debaixo do chuveiro para que você, além da água quente, tenha o alento para descansar sua cabeça entre as contrações. A doula pensará na temperatura do ambiente, se você está com sede e com fome. Vai usar dos aromas, músicas, olhares e palavras para que você se sinta segura para o seu mergulho interior”.

“Cada vez que você voltar para a superfície, poderá se nutrir de confiança para ir mais fundo. Poderá olhar nos olhos dela, que, silenciosa, acredita que você conseguirá: um brilho vai iluminar seu caminho, a luz que vem da força de quem acredita na vida. A doula não mergulha para você, mas te fala dos reinos abissais. Conta sobre as etapas do mergulho. Ajuda para que você se lembre de respirar, que não lute contra as ondas e se entregue às correntezas. A doula te conta sobre o fundo do oceano, sua beleza e mistérios. Fica ali na superfície, para que você mergulhe, e se, na ausência de ar ou coragem, ela te relembre do que você já sabe. Até que você mergulhe nas profundezas e traga consigo dois tesouros: a cria parida e uma nova você, que não teme nem os mergulhos nem os saltos. Você volta gigante e transformada.”

Agora, Luciana, é com você. Que Marina seja bem-vinda ao mundo!

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente