Com flores de crochê em árvores de BH, decoradora milita contra o ódio

Todos os dias, uma flor tecida e amarrada numa árvore. Projeto no mínimo inusitado desperta curiosidade e ganha a empatia dos belo-horizontinos

por Maria Irenilda Pereira 03/07/2018 07:00


O que você faz para mudar o mundo? A pergunta pode parecer utópica ou missão quase impossível, mas o segredo para um movimento tão grandioso pode estar nas pequenas ações individuais. A decoradora Odette Castro acredita e pratica essa ideia. Há quatro meses, ela começou a tecer flores de crochê e amarrá-las em árvores de Belo Horizonte. “Vou colocar uma flor todo dia em uma árvore. É a minha forma de gritar para o mundo parar de odiar”, conta. O projeto Uma flor cura uma dor iniciou-se cinco meses depois que a inspiração para a sua criação havia nascido: Ana Catarina, a primeira neta de Odette.

Foi pela pequena que a avó resolveu espalhar amor para todos que tiverem a sorte de cruzar pelas plantas decoradas na cidade. “Quando a Ana Catarina nasceu, comecei a ver o mundo com mais amor, porque neto faz esse movimento na sua vida. E coincidiu muito o nascimento dela com uma explosão de ódio nas redes sociais. E pensei que tinha que fazer algo por ela. Nem que seja pra mais tarde ela falar: ‘Tinha uma avó doida, que plantava flores em árvores’”, define, entre risos. Ativa nas redes sociais, Odette é seguida por mais de 1.500 pessoas no Facebook. No seu perfil, ela fala sobre causos do dia a dia que defendem a diversidade, a inclusão e o respeito às diferenças.

Beto Novaes/EM/D.A Press
"Fiz uma conta na minha cabeça assim: amarro uma flor, uma pessoa olha essa flor por um segundo. Por um segundo ela desviou a vida dela do ódio. E se 50 pessoas olharem, serão 50 segundos de paz no mundo" - Odette Castro, idealizadora do Uma flor cura uma dor (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

E foi no espaço de interação virtual que ela percebeu que, nos últimos tempos, houve crescimento do ódio e do radicalismo. “As pessoas estão com muita raiva, elas estão exalando ódio. Precisamos espalhar coisas boas”, destaca. O crochê, que sempre esteve ativo na vida da avó de Ana Catarina, se apresentou mais uma vez como solução. “Nas horas alegres ou tristes, sempre recorro ao tricô e ao crochê. Aprendi crochê com minha tia, quando tinha 5 anos. É minha catarse”, comenta, ao relembrar o processo de criação do projeto, que ainda teve respaldo matemático. “Fiz uma conta na minha cabeça assim: amarro uma flor, uma pessoa olha essa flor por um segundo. Por um segundo ela desviou a vida dela do ódio. E se 50 pessoas olharem, serão 50 segundos de paz no mundo” projeta.

Odette é mãe de Laura e Beatriz. A sensibilidade para causas humanas e sociais, segundo a decoradora, veio com a chegada de Beatriz. A filha caçula da ex-funcionária pública tem uma síndrome rara, chamada Rubinstein-Taybi, que, entre outras características, provoca a atrofia do cérebro. Hoje, com 31 anos, Beatriz trouxe junto com os desafios e aprendizado transformação na vida da ex-funcionária pública, que passou a desenvolver trabalhos sociais para combater o preconceito, o bullying e a padronização social. “Com a síndrome da Beatriz, comecei a me ligar mais às causas humanas e ao mundo. A verdade é que quando vem uma situação adversa na sua vida é que você começa a ter um olhar mais crítico sobre as mazelas do mundo”, comenta.

CAMINHOS DO AMOR

As primeiras flores enfeitaram as árvores da rua onde mora, no Bairro Sion, Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Depois, ganharam a Avenida Uruguai e chegaram à Praça Nova York. As pessoas começaram a se envolver e a incentivar o trabalho da jardineira do amor. “As pessoas já começaram a parar, perguntar, tirar fotos e a elogiar”, conta. E se o trecho da oração de São Francisco de Assis já dizia que é dando que se recebe, Odette garante ter colhido muito mais do que tem plantado. “Está sendo um projeto maravilhoso pra mim, inclusive. Quando observo a rua que já está cheia de flores, falo: ‘Nossa, joguei amor em 10 árvores’. Isso é muito gratificante”, comemora.

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A cada dia, uma flor aparece em um local diferente da cidade. Trabalho feito em crochê pretende despertar nas pessoas espírito de solidariedade (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

As flores, tecidas e decoradas cuidadosamente por Odette, podem até não ter o endereço definido, mas são projetadas para levar a mensagem certa. “Esse projeto não é só colocar flor em árvore. Grito de forma singela, por meio dele, o que quero gritar”, destaca. Desde homenagens delicadas, como a feita para o Dia das Mães, às produções carregadas de simbolismo, como a que alertou sobre o feminicídio. “Maio foi um mês que me assustou muito, com o assassinato de mulheres. Então, fiz uma flor negra, usei lã áspera e fiz uma flor não muito bonita. Ela era bem assimétrica e a amarrei na árvore mais fina da rua. O objetivo era mostrar a impotência e a fragilidade de nós, mulheres, perante o machismo. Foi um grito de pare!”, explica.

O trajeto que as flores vão seguir pela cidade não está definido. O que é certo, segundo a idealizadora, é que seu projeto é para a vida toda. “Vou tecer enquanto viver, enquanto tiver forças. É um projeto de vida”, afirma. A receita pode ser reproduzida por todos, mas cada um inserindo seu próprio ingrediente. “A flor de crochê é o que tenho dentro de mim para oferecer. Então, acho que está na hora de cada um oferecer o que ele tem dentro dele. É só isso que vai consertar o mundo”, avalia.

LAÇO SOCIAL

Para a psicanalista Samyra Assad, membro das Escola Brasileira e Associação Mundial de Psicanálise, ações como a de Odette são formas positivas de estabelecer laço social. “Diante de tanto individualismo que temos vivido na contemporaneidade, ações como esta são formas de você, com sua obra, incrementar o laço social”, avalia. Para ela, fazer o bem para o outro é, antes de tudo, fazer o bem para si mesmo, e atividades como esta precisam ser valorizadas. “O importante é não banalizar ações assim. É algo totalmente precioso, por ser único”, destaca.

A psicóloga e psicanalista Maria Goretti também avalia positivamente o trabalho da decoradora. Esse tipo de iniciativa é sempre bem-vindo. Pessoas que abraçam causas revelam não só ato de gentileza, mas apreço pelo outro, o desejo de proporcionar à comunidade uma sensação de bem-estar, trazendo ou renovando esperança em meio ao caos de uma metrópole”, avalia. Goretti destaca, ainda, que o trabalho voluntário, além de revelar movimento de doação e desprendimento, costuma trazer sensação agradável de conforto e serenidade para quem o faz. “O próprio ato de cuidar do outro é, em si, ato de amor, prescindindo de palavras e de reconhecimento. Ou seja, gesto de pura gratuidade, que beneficia mais quem oferece do que quem recebe”, completa.