Entre flashes do novo cabelo de Neymar, opiniões a favor e contra nas redes sociais, entre os jogos de uma tal Copa do Mundo na Rússia, ela está perdida, envergonhada, sem conseguir tirar da gaveta a camisa verde e amarela confeccionada, em outras Copas, pelo nobre amigo pecador Carlos Ferrer. As traças degustaram a camisa guardada por tantas Copas, mais celebradas do que a de agora.
Ela não sabe o que fazer, os sentimentos estão embaraçados. Pensa no amigo, o jornalista, escritor e cronista Roberto Drummond, que morreu durante a Copa do Mundo de 2002. Voa para o dia 21 de junho daquele ano, no jogo Inglaterra 1, Brasil 2, quando o telefone toca e a notícia da morte do mestre chega como uma bomba e destrói tudo à sua volta. Apesar de passados 16 anos, ela pensa como o tempo é fugaz, como tudo muda rápido demais, mas que a saudade ainda dói.
Ela foi perdendo pai, mãe, irmão, amigos e companheiros ao longo desse tempo. Mudou de casa mais de 20 vezes, uma espécie de cigana do asfalto. Até que decidiu viver em outra cidade.
Ela ainda está se adaptando a um novo estilo de vida, mas continua ligada nos acontecimentos do mundo que cutucam o seu velho ego, até que o WatsApp chama. O convite é de Joelma Rosa de Souza Klöfer, de 41 anos, uma das belezas naturais da Serra do Cipó. Convida para tomar um vinho na casa dela, entre uma entrada de tomates frescos com muçarela de búfalo, manjericão e castanhas, uma massa especial com pesto que ela mesma faz - e muitas histórias de vida.
Imperdível o convite, mas ela vai com calma, porque Joelma é dona de uma pizzaria na Serra do Cipó diferente de tudo que já se viu. Ela aprendeu a cozinhar com a avó Ambrosina, a Tutita do Cipó, que já partiu para outros paraísos.
Educada pela avó, que até hoje é sua inspiração na cozinha, Joelma conta que, criança ainda, com 7 anos, ficava encantada com o fogão de cimento verde queimado, sempre aceso, como se fosse a alma da casa. Era uma cozinha viva.
Joelma e a convidada, então, degustam o vinho, que desce macio, redondo, pacificando as inquietações, as angústias urbanas que insistiam em tumultuar o espírito. Mas para quem, como Joelma, convive desde cedo com a natureza, os sentimentos correm limpos, transparentes como as águas do rio a poucos metros dali, que ainda teima em sobreviver, apesar de todos os atentados.
Ela conta que, bem cedo, a avó começava a preparar o almoço e pedia para que Joelma descascasse os alhos. Colocava um banquinho para que ela pudesse alcançar o fogão a lenha.
Joelma jamais se esquece da vassourinha de alecrim feita pela avó para limpar o fogão a lenha. A vassourinha ia espalhando o cheiro do alecrim - erva da alegria - pela casa e lavando a alma.
Ao som embriagante do jazz ao fundo, Joelma surpreende. Chama para fora da casa, onde fica uma esteira. Apaga as luzes, já que na rua a iluminação é quase uma penumbra. Ela convida para sentar na esteira e olhar o céu.
Ao nosso lado, o cão Bob faz companhia. Apesar de enorme, Bob é manso e atende comandos em alemão. Foi Thilo, de 43, marido de Joelma, quem adestrou Bob. Há três anos, Thilo veio da Alemanha para conhecer a Serra do Cipó. E caiu nos encantos de Joelma e da cultura local. Eles se conheceram em uma das centenas de cachoeiras, mas Thilo não foi embora mais. Ficou. Casados há três anos, eles falam a linguagem universal do afeto.
É hora de experimentar a massa com molho pesto, socado no pilão com alho, manjericão, castanhas e azeite. Comida dos deuses, sagrada e regada com vinho e com a história de uma mulher que é a própria natureza.
Nossa, já são 10 da noite! Hora de ir embora, pois aqui a madrugada chega cedo. Ainda mais no inverno, que espanta os moradores e turistas para dentro de casa e das pousadas. As ruas estão desertas a essa hora. Mas Joelma não deixa sair sem levar um agrado. Um pouco da massa com pesto e queijo parmesão vai com a convidada.
A gata Juma Marruá passa por mim como um relâmpago e estaciona na poltrona da sala. E eu que nunca gostei de gatos, presto atenção em Juma, que, em silêncio, escuta jazz junto com Joelma.
* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente.