A natureza de Joelma

"Joelma e a convidada, então, degustam o vinho, que desce macio, redondo, pacificando as inquietações, as angústias urbanas que insistiam em tumultuar o espírito"

por Déa Januzzi 25/06/2018 07:00
Paulinho Miranda/EM/Ilustração
(foto: Paulinho Miranda/EM/Ilustração)

Entre flashes do novo cabelo de Neymar, opiniões a favor e contra nas redes sociais, entre os jogos de uma tal Copa do Mundo na Rússia, ela está perdida, envergonhada, sem conseguir tirar da gaveta a camisa verde e amarela confeccionada, em outras Copas, pelo nobre amigo pecador Carlos Ferrer. As traças degustaram a camisa guardada por tantas Copas, mais celebradas do que a de agora.

Ela não sabe o que fazer, os sentimentos estão embaraçados. Pensa no amigo, o jornalista, escritor e cronista Roberto Drummond, que morreu durante a Copa do Mundo de 2002. Voa para o dia 21 de junho daquele ano, no jogo Inglaterra 1, Brasil 2, quando o telefone toca e a notícia da morte do mestre chega como uma bomba e destrói tudo à sua volta. Apesar de passados 16 anos, ela pensa como o tempo é fugaz, como tudo muda rápido demais, mas que a saudade ainda dói.

Ela foi perdendo pai, mãe, irmão, amigos e companheiros ao longo desse tempo. Mudou de casa mais de 20 vezes, uma espécie de cigana do asfalto. Até que decidiu viver em outra cidade.

Ela ainda está se adaptando a um novo estilo de vida, mas continua ligada nos acontecimentos do mundo que cutucam o seu velho ego, até que o WatsApp chama. O convite é de Joelma Rosa de Souza Klöfer, de 41 anos, uma das belezas naturais da Serra do Cipó. Convida para tomar um vinho na casa dela, entre uma entrada de tomates frescos com muçarela de búfalo, manjericão e castanhas, uma massa especial com pesto que ela mesma faz - e muitas histórias de vida.

Imperdível o convite, mas ela vai com calma, porque Joelma é dona de uma pizzaria na Serra do Cipó diferente de tudo que já se viu. Ela aprendeu a cozinhar com a avó Ambrosina, a Tutita do Cipó, que já partiu para outros paraísos.

Educada pela avó, que até hoje é sua inspiração na cozinha, Joelma conta que, criança ainda, com 7 anos, ficava encantada com o fogão de cimento verde queimado, sempre aceso, como se fosse a alma da casa. Era uma cozinha viva. Sem luz elétrica, ainda com lamparinas. Todos acordavam com o orvalho da madrugada cobrindo a casa. O galo cantava e o Sol ainda estava se espreguiçando lá no horizonte, despertando devagar. O leite já estava na porta, entregue cedinho, e todos se sentavam para o café da manhã, com broa de fubá e biscoito de polvilho.

Joelma e a convidada, então, degustam o vinho, que desce macio, redondo, pacificando as inquietações, as angústias urbanas que insistiam em tumultuar o espírito. Mas para quem, como Joelma, convive desde cedo com a natureza, os sentimentos correm limpos, transparentes como as águas do rio a poucos metros dali, que ainda teima em sobreviver, apesar de todos os atentados.

Ela conta que, bem cedo, a avó começava a preparar o almoço e pedia para que Joelma descascasse os alhos. Colocava um banquinho para que ela pudesse alcançar o fogão a lenha. A avó, então, ensinava que comida se fazia com muito alho, gordura de porco - pasmem os modernos -, panela de ferro preta e, então, mexe e mexe, porque o feijão tem que cantar para ficar gostoso. Essa é a essência de Joelma, que cozinha com toda a memória afetiva, olfativa e de curadora da avó. Uma raizeira das melhores, com quem aprendeu que folha de losna é indicada para curar o fígado. Folha de laranja acalma, a de chuchu é boa para abaixar pressão e tantas outras receitas de remédios naturais, longe da farmacopeia institucionalizada.

Joelma jamais se esquece da vassourinha de alecrim feita pela avó para limpar o fogão a lenha. A vassourinha ia espalhando o cheiro do alecrim - erva da alegria - pela casa e lavando a alma.

Ao som embriagante do jazz ao fundo, Joelma surpreende. Chama para fora da casa, onde fica uma esteira. Apaga as luzes, já que na rua a iluminação é quase uma penumbra. Ela convida para sentar na esteira e olhar o céu. Aponta Vênus, delira com a lua nova e com a Via Láctea. O espetáculo da estrela cadente é recebido com palmas pelas duas, que festejam o Universo e seus mistérios, a mostrar que somos nada diante dessa imensidão.

Ao nosso lado, o cão Bob faz companhia. Apesar de enorme, Bob é manso e atende comandos em alemão. Foi Thilo, de 43, marido de Joelma, quem adestrou Bob. Há três anos, Thilo veio da Alemanha para conhecer a Serra do Cipó. E caiu nos encantos de Joelma e da cultura local. Eles se conheceram em uma das centenas de cachoeiras, mas Thilo não foi embora mais. Ficou. Casados há três anos, eles falam a linguagem universal do afeto. Ele também ficou fascinado com as tradições locais e os cuidados dessa nativa, que faz pizzas artesanais de pequi, cagaita, ora-pro-nóbis, almeirão, taioba, escarola. Produtos regionais, orgânicos e de cada estação. A pizzaria de Joelma é o forno a lenha da Serra do Cipó. Os turistas se sentem atraídos pelo espaço de convivência com a natureza e com a harmonia de sabores exóticos.

É hora de experimentar a massa com molho pesto, socado no pilão com alho, manjericão, castanhas e azeite. Comida dos deuses, sagrada e regada com vinho e com a história de uma mulher que é a própria natureza.

Nossa, já são 10 da noite! Hora de ir embora, pois aqui a madrugada chega cedo. Ainda mais no inverno, que espanta os moradores e turistas para dentro de casa e das pousadas. As ruas estão desertas a essa hora. Mas Joelma não deixa sair sem levar um agrado. Um pouco da massa com pesto e queijo parmesão vai com a convidada.

A gata Juma Marruá passa por mim como um relâmpago e estaciona na poltrona da sala. E eu que nunca gostei de gatos, presto atenção em Juma, que, em silêncio, escuta jazz junto com Joelma.

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente