Ninguém pode matar esse amor

A chama daquilo que os mantém juntos: os sonhos e os projetos de futuro, não tão a longo prazo assim

por Déa Januzzi 11/06/2018 14:00
Ilustração/EM
(foto: Ilustração/EM)

Ele tem 80 anos e quer ser chamado de Bálsamo, planta indicada para 1.001 dores de estômago, que cura feridas e remenda cicatrizes. Ela, de 67, tem dúvidas. Gostaria que bambu fosse feminino, assim como Bambuza, porque levou tantos trancos da vida que aprendeu a balançar, a vergar sem quebrar com os caprichos do tempo. Mas bambu é masculino, por isso pensa em Paineira que tem muitos espinhos, mas dá uma flor linda e paina para rechear travesseiros macios, onde repousam sonhos. Depois de muito pensar decide ser Camomila, pois as propriedades medicinais dessa erva preenchem um livro.

Bálsamo e Camomila estão juntos há 40 anos. O casamento deles tem efeitos antioxidantes como a erva que ela escolheu para ser chamada neste texto. E, muitas vezes, ele, de fato, é bálsamo para as feridas de um relacionamento longo que sangra vez ou outra, mas logo se recupera com doses certas de amor, respeito e cumplicidade.

Camomila não se liga em redes sociais, não quer dizer o nome, pois não gosta muito de holofotes, apesar de ser constantemente requisitada por quem está desconectado do mundo interior. Na maioria do tempo, ela está junto à natureza exuberante e bem cuidada do lugar onde mora. Morre de rir quando conta que certo dia uma repórter de uma revista nacional ligou para uma entrevista e perguntou: “Você está on-line?”. Ela respondeu: “Não, minha filha, estou na horta”.

Não pensem que Bálsamo e Camomila estão parados no tempo. Os três filhos do casal estudam e trabalham em países estrangeiros. Foram eles que mostraram para os pais o gosto de sair com uma mochila leve para conhecer o mundo, mas sempre com um bom seguro de saúde para viagens longas e para qualquer eventualidade, caso a velhice os surpreenda. Eles viajam felizes com os filhos e noras, a experimentar, a conhecer lugares novos, a passear, mas voltam sempre para o canto deles que a cada dia transformam em lar.

Como é viver um casamento de 40 anos com a mesma pessoa? Camomila diz que é possível, mas que é preciso casar de novo várias vezes durante esse tempo. Inúmeras, pois aquela pessoa que você casou não existe mais. Nem você é a mesma. Nesse momento, muitos casais acham que cometeram um engano, porque o corpo e a alma mudaram, mas ao mesmo tempo tudo é muito rico. É hora de reinventar esse lugar de mãe depois que os filhos se vão. Você fica de frente para o parceiro. Defeitos? Com certeza, mas Bálsamo tem muito mais créditos do que débitos com Camomila, que voltou a beijar na boca só agora, porque antes não dava tempo.

Ela era o sonho e ele o pé de feijão. Hoje, ele pode ser o sonho e ela o pé de feijão. Cada um sabe o que tem de fazer. Ele supervisiona, ela acolhe. Eles trabalham juntos, mas é como uma dança: “Eu sei o que é meu. Ele sabe o que é dele. Eu sei o que é dele. Ele sabe o que é meu. E a gente entra junto só para ajudar e sustentar um ao outro”.

A rotina de Bálsamo e Camomila é muito simples, feita de pequenas coisas. Eles sabem onde estão os ninhos dos passarinhos, o que os tucanos estão procurando, quando as siriemas quebram as nozes e os esquilos comem as sementes. Eles fazem armadilhas para os gambás não invadirem a casa. Recebem a visita da onça-parda que come os carneiros, mas que faz parte. Eles se assustam com o tatu comendo abacate na época desse fruto. Observam de oito a 10 jacus chupando as amoras que ela estava programando fazer geleia.

Tomaram um susto com o aparecimento de um lobo-guará namorando as galinhas. Por três dias rondando o lugar. É um espetáculo a céu aberto ver a festa dos assanhaços nas frutinhas do sabugueiro, dos beija-flores que visitam os jardins todos os dias, das pererecas que resolveram morar nos potes antigos. Uma delas, inclusive, recebeu o nome de Sarita. O casal de sapos é conhecido como Hortência e Dimas.

Lá, na televisão ligada no canal da natureza, as saracuras estão subindo e 84 passarinhos partilham a comida com os jacus. Camomila não se cansa de observar a aranha tecendo a teia da vida. Essa teia fala sobre o vazio que leva à falta, mas que é inútil tentar preencher. É esse vazio que nos conduz à nossa porção divina, aos fios do destino. Não dá para fugir nem transferir, pois é aí que reside o livre arbítrio e as escolhas de cada um.

Há um momento particularmente sagrado para o casal. Quando o Sol se põe, Bálsamo chama Camomila para assistir televisão. As duas cadeiras esperam lá fora, de frente para as montanhas. Eles olham para lá, onde a visão se perde na imensidão do Universo. É um momento de meditação e também de oração. Cada um vai para seu mundo, para as próprias memórias, porque a alma emerge, não tem jeito. A memória do caminho da vida que cada um trilhou vem. Às vezes, as memórias não são tão românticas, tão coloridas quanto a cor do céu ao amanhecer ou ao entardecer, mas é o momento de cada um. A memória de cada um é sagrada, não deve ser violada nem sondada. Entra aí um silêncio respeitoso, quase religioso. Então, acontece um aperto de mão, um olhar de almas que se comunicam, de coração com coração.

Em seguida, Bálsamo e Camomila vão para dentro de casa, agradecem pelo momento sagrado - e compartilham a sopa quente e o pão, à luz de velas, para manter a chama da paixão, da admiração, dos olhares de cumplicidade. A chama daquilo que os mantém juntos: os sonhos e os projetos de futuro, não tão a longo prazo assim. Apenas os viáveis, pois Camomila sabe que está envelhecendo, que as juntas vão enferrujando, o esquecimento chegando, mas qualquer sopro de carinho está lá a regateira toda alegre de novo, confiando e cantando. “Tá caindo fulô, tá caindo fulô. Lá no Céu, lá na Terra, tá caindo fulô.”

Dá para viver tanto tempo junto? Camomila diz que sim, mas tem que focar nas qualidades não nos defeitos. Se o defeito for muito grave, cada um segue o seu caminho. Pois cada um só dá o que tem e só faz o que sabe. Amor assim ninguém consegue matar!

* Déa Januzzi assina esta coluna quinzenalmente