Software evita rejeição nas transfusões de sangue

A partir da análise de sequências genéticas, programa indica o risco de ocorrência de complicações em decorrência de incompatibilidade sanguínea com 99% de precisão

por Correio Braziliense 25/05/2018 10:05
Ed Alves/CB/D.A Press - 20/12/17
Além dos tipos comuns - A, B, AB e O -, há mais de 300 antígenos no sangue que diferenciam indivíduos: algoritmo poderá otimizar as doações (foto: Ed Alves/CB/D.A Press - 20/12/17)

A maior parte das pessoas está familiarizada com os tipos sanguíneos A, B, AB e O, mas existem outras centenas de grupos antígenos nas células vermelhas - substâncias que podem desencadear respostas imunológicas no organismo - que diferem de indivíduo para indivíduo. Quando alguém recebe uma transfusão, caso esses antígenos não sejam reconhecidos pelo corpo, pode até morrer. Atualmente, não existem métodos para determinar todos eles. Porém, à medida que o sequenciamento total do genoma se tornar rotineiro para os pacientes, talvez seja possível identificar tanto os doadores quanto os receptores em risco de rejeição, uma condição rara, antes das transfusões.

Em um estudo publicado na revista The Lancet Haematology, pesquisadores do Hospital Brigham and Women e da Faculdade de Medicina de Harvard, além do Centro de Sangue de Nova York, divulgaram o primeiro teste de sequenciamento total do DNA para desenvolver e validar um programa de computador que determine as diferenças nos tipos sanguíneos com mais de 99% de precisão.

“Complicações em transfusões de sangue são comuns em pacientes que precisam desse procedimento de forma crônica, mas, com a tecnologia atual, não é financeiramente possível fazer a testagem de sangue para todos os antígenos”, diz William Lane, diretor do Laboratório de Informática Clínica do Hospital Brigham and Women e primeiro autor do artigo. “Mas o algoritmo que desenvolvemos pode ser aplicado para testar todo mundo para todos os grupos sanguíneos relevantes a baixo custo, assim que for obtido o sequenciamento”, complementa.

Antígenos estranhos

Transfusões de sangue são um dos procedimentos mais rotineiros da medicina, com mais de 3,5 milhões feitas no Brasil a cada ano. Complicações decorrentes podem levar a óbito. Quando o corpo encontra antígenos estranhos nas células do doador, ele estimula a produção de anticorpos para destruir as células doadas. Desde o nascimento, as pessoas desenvolvem substâncias específicas de seu grupo sanguíneo, mas outros anticorpos podem ser estimulados durante a gestação a partir da exposição da mãe às células fetais ou quando o indivíduo é alvo de múltiplas transfusões. Dessa forma, aumenta o risco de o organismo rejeitar o sangue de um doador.

“Essa abordagem tem o potencial de ser o primeiro uso clínico de rotina da genômica para os cuidados de pacientes que precisam de transfusão”, acredita Connie M. Westhoff, pesquisadora do Centro de Sangue de Nova York e coautora do artigo. “Ela pode prevenir sérias ou mesmo letais complicações porque, uma vez que os pacientes são sensibilizados, eles têm um risco crônico para reações caso estejam em uma emergência médica e precisem de transfusões”, diz.

Validação

Atualmente, a maior parte dos testes checam apenas a compatibilidade do tipo ABO e do antígeno Rh entre doador e receptor, mas mais de 300 antígenos presentes nas células sanguíneas e 33 nas plaquetas são conhecidos. Para criar uma forma barata de examinar a reação do organismo de um grande número de pessoas a essas substâncias, William Lane e os colaboradores se uniram para construir um banco de dados e desenvolver o algoritmo, chamado bloodTyper (tipificador sanguíneo), que pode predizer rapidamente e com acurácia o perfil dos antígenos do sangue a partir de sequências genéticas. Lane, Westhoff e outros pesquisadores validaram o software comparando os resultados a métodos tradicionais que, contudo, são mais trabalhosos e caros.

O bloodTyper teve 99% de precisão na identificação dos anticorpos dos genomas de participantes do Projeto MedSeq. Trata-se de um estudo de pesquisa empírica que tem como objetivo medir o impacto do sequenciamento total do DNA na prática da medicina. Mais de 1 mil pessoas voluntariamente doaram seus genomas para o banco de dados. “Esse artigo demonstra uma utilidade que jamais havíamos imaginado e que poderá trazer grande benefício caso o sequenciamento total do genoma torne-se uma rotina médica”, afirma Robert Green, principal pesquisador do MedSeq. “O sequenciamento do genoma, agora, pode identificar potenciais receptores de transfusões que precisam de tipos sanguíneos raros, assim como as pessoas que podem fornecê-los de maneira segura.”

Fator de risco para hemorragia

O sangue tipo O está associado a altas taxas de mortalidade em pacientes que sofreram traumatismos graves, segundo um estudo recém-publicado na revista Critical Care que envolveu 101 japoneses atendidos em prontos-socorros. Pesquisadores do Hospital Universitário de Tóquio descobriram que, nessas pessoas, a mortalidade é 28% maior, comparada à taxa de 11% detectada em indivíduos de outros tipos sanguíneos.

“Estudos recentes sugerem que o tipo O poderia ser um fator de risco em potencial para hemorragia. A perda de sangue é a principal causa de morte em pacientes com traumas graves, mas estudos que associem tipo sanguíneo e risco de morte são escassos”, justifica Wataru Takayama, autor correspondente do artigo. “Queríamos testar a hipótese de que a sobrevivência a um traumatismo sério é afetada por diferentes tipos sanguíneos.”

De acordo com o médico, pessoas com tipo O têm níveis mais baixos de fator von Willebrand, um agente coagulante. Os autores do artigo sugerem que as taxas reduzidas dessa substância são uma explicação possível para a mortalidade maior em pacientes tipo O que sofrem acidentes graves. “Nosso estudo também levanta questões sobre como a transfusão desse sangue em pessoas que sofreram traumas graves pode afetar a homeostase, processo que faz o sangramento parar. Precisamos de mais pesquisas para investigar os resultados que tivemos e desenvolvermos a melhor estratégia de tratamento para esses pacientes”, afirma Takayama.

Levantamento: 3,5 milhões é a quantidade de transfusões feitas anualmente no Brasil, segundo o Ministério da Saúde