Música atua como guia, levando a pessoa a olhar para dentro

A primeira comunicação da criança é pelo som e não pela palavra e este som provoca impressões sensoriais que a acompanharão pela vida

por Lilian Monteiro 29/04/2018 14:09

Marcílio Nicolau/Divulgação
Psiquiatra e psicanalista, Gilda Paoliello explica que muito antes da eficácia da palavra, estamos diante da eficácia do som (foto: Marcílio Nicolau/Divulgação)
“No princípio era o silêncio. Muito antes da palavra, é a sonoridade que introduz a criança na linguagem e que traz o colorido afetivo às suas vidas. Estudos mostram que no sétimo mês de gestação o feto já é sensível à organização melódica da linguagem, às variações temporais e de frequência que marcam o ritmo e a entonação das vozes e as emoções transmitidas por estas. Naturalmente, os bebês reagem às entonações e às vozes pelos valores afetivos que elas veiculam e adaptam seu comportamento de acordo com as emoções transmitidas pela voz. Assim, muito antes da eficácia da palavra, estamos diante da eficácia do som”, explica Gilda Paoliello, psiquiatra e psicanalista. Como duvidar do poder da música? Como viver sem ela?


Gilda Paoliello nos lembra que o choro é a primeira e principal forma de comunicação do bebê, já que é por meio dele que terá as suas necessidades atendidas pelos pais, seja o frio, a fome ou a dor. Para além do choro, o bebê produz sons puramente vegetativos ou guturais, espirros, soluços e tosse. Esses sons, nos ensina a fonoaudiologia, preparam os órgãos fonoarticulatórios à passagem do ar, o que tem um aspecto estimulante na futura produção da fala. “Mas antes da fase linguística, o bebê inicia a lalação, o blá-blá-blá, produção de sons mais ou menos articulados, sem significados, mas totalmente significantes, pura música que media precocemente a comunicação da criança com a mãe, além de expressar seu júbilo pela própria produção.” Ela destaca que o filósofo e músico Pascal Quignard esclareceu que “o vínculo entre o bebê e a mãe, o reconhecimento de um pelo outro e a aquisição de uma língua materna, forjam-se numa incubação sonora anterior ao nascer, prosseguida depois do parto, reconhecida em gritos e vocalizações, depois em canções e refrões, nomes e apelidos, frases recorrentes e coercivas que se transformam em ordens”.


Já na psicanálise, Gilda Paoliello explica que a capacidade de sentir emoções, assim como a formação do psiquismo, antecede o nascimento da criança, por meio da formação de sua parte mais primitiva, o inconsciente, que recebe as primeiras impressões captadas a partir da sonoridade. “Esses primeiros registros são guardados cuidadosamente, deixando marcas profundas no inconsciente que começa a se estruturar como uma linguagem sonora, muitíssimo antes do registro de palavras. Então, nosso inconsciente é musical. ‘Ele trata as palavras como músicas, pelo seu encadeamento sonoro, num fraseado de sons’, sinaliza o psicanalista Antonio Quinet em seu maravilhoso artigo Psicanálise e música – reflexões sobre o inconsciente equívoco.”


Como a primeira comunicação da criança é pelo som e não pela palavra, e este som provoca as primeiras impressões sensoriais no inconsciente, no depois, em outros momentos de nossas vidas, Gilda conta que a música vai nos dizer o que é indizível, nos tocando lá no fundo, onde a palavra falta. Esse puro som é o primeiro significante que nos marca e que vai nos remeter a outro e outro significante, pelo encadeamento sonoro das lembranças, nos possibilitando viajar pela música, dando novos sentidos às nossas vidas.

EU TE AMO A psicanalista destaca que a musicalidade ou entonação de nossa fala pode expressar, mais do que as palavras, nosso sentimento. “Assim, a frase ‘eu te amo’, dependendo da entonação usada, pode expressar carinho, apelo, desespero, raiva e até ódio, da mesma forma que a lalação do bebê. É pela ressonância, pela musicalidade que se expressa o real do inconsciente que nos marca. ‘A natureza dos sons é ser invisível, sem contornos precisos, com o poder de interpelar o invisível ou se fazer mensageiro do que não se pode delimitar’, nos diz o já citado Quignard, e continua: ‘os ouvidos não têm pálpebras. Há um carácter passivo no escutar. Ouvir é ser tocado a distância.’”


O poder da música é tão espetacular, que Gilda cita o também psicanalista Jaime Milheiros: “‘A música transporta percursos da nossa própria construção física e mental e será sempre um evocador de afetos e de fantasmáticas representações de um regresso a casa’. E que casa é esta? ‘A música, mais do que todas as outras artes, implica a possibilidade desse regresso ao seio materno, essa entrega regressiva a um paraíso perdido...’, nos responde a psicanalista Marie-France Castarède”.
A música está presente em todas as áreas. Com bem lembra Gilda Pailiello, “‘sem a música a vida seria um erro’, disse Nietzche com toda a força de seu pensamento. Frequentemente associamos nosso estado de espírito à melodia de inúmeras obras musicais, ao canto dos pássaros, do vento, das ondas do mar. A musicoterapia se apropria desses recursos como método para tratar, em um contexto clínico, vários problemas de saúde e comportamento, utilizando elementos constituintes da música, como ritmo, harmonia e melodia”.


Gilda Paoliello conta que os objetivos terapêuticos mais relevantes da música consistem em promover a comunicação, aprendizado e expressão, mas tratar também doenças somáticas. “A ideia básica é reconhecer que uma grande parte das doenças se originam no cérebro, ou no inconsciente na leitura psicanalítica, que então transmite a uma parte do corpo um estímulo específico, reproduzindo uma doença. A musicoterapia tenta obter estímulos que levam a um relaxamento ou cancelamento daqueles estímulos que reproduzem a doença, por meio de várias melodias com as quais podem ser alcançados efeitos surpreendentes.”


Uma superdica da psiquiatra e psicanalista é que circula na internet uma lista de obras clássicas e suas virtudes sobre nossos incômodos. Exemplos: para insônia, Noturnos de Chopin; hipertensão, As quatro estações de Vivaldi; ansiedade, Concerto de Aranjuez, de Joaquim Rodrigo; dor de cabeça, Sonho de amor, de Liszt etc. Gilda Paoliello diz ainda que “no icônico Laranja mecânica, de Kubrick, onde o personagem Alex é condicionado com a Nona sinfonia de Beethoven, vemos fortemente como a música é uma extensão das emoções tanto do personagem quanto do espectador. Mesmo que não cure, a música sempre vai nos melhorar a vida, pois quem canta seus males espanta!”.

 

MÚSICA É PARTE DA VIDA

 

A Target Group Index, solução da Kantar IBOPE Media, líder no mercado de pesquisa de mídia na América Latina, em setembro de 2017 divulgou os seguintes dados relacionados à música:
» 64% dos brasileiros concordam com a frase “a música constitui parte importante em minha vida”
» entre os que consideram a música parte importante da vida, 20% afirmam que vão a shows. Destes, 76% frequentam casas de espetáculos, 55% vão a shows ao ar livre e 48% assistem a shows em estádios
» levando em consideração somente a audiência da TV aberta, Fortaleza e Recife são os mercados que mais se destacam no consumo de programação musical: 74% dos indivíduos da Grande Fortaleza e 73% dos telespectadores da Grande Recife assistiram ao menos um minuto do gênero. Elas são seguidas por São Paulo (68%), Salvador (52%) e Porto Alegre (47%) no consumo de programação musical

 

Cinco perguntas para...

Renata Feldman,
psicóloga, escritora, professora universitária, palestrante e psicoterapeuta humanista com foco nas relações afetivas

 

Cris Albuquerque/Divulgação
(foto: Cris Albuquerque/Divulgação )


Como a música influencia e pode ajudar as pessoas?

Como tudo na vida, a música também está inserida em um contexto de causa e efeito, atuando como um importante estímulo sensorial que pode ser extremamente benéfico e transformador para o ser humano. Não é à toa que existem os jargões: “Quem canta seus males espanta”, “A música é um alimento para a alma.”

A música é terapêutica?

Há gêneros, ritmos e melodias que causam um profundo efeito de relaxamento. No meu consultório, deixo já separada uma seleção de música instrumental para usar diante de clientes com quadros de ansiedade, estresse e depressão. Por meio de exercícios de mentalização, a música atua como um guia e um facilitador, levando a pessoa a olhar para dentro e se ouvir, se enxergar, se encontrar. É como “mudar a chave”, a sintonia: a respiração se acalma, a angústia diminui, a tristeza dá lugar a uma outra perspectiva emocional. Significativos insights podem surgir daí.

Música é catarse?
Em outros casos, a música causa um efeito catártico, contribuindo para a liberação de algo que foi reprimido pelo indivíduo: pode ser um sentimento de raiva, um luto não vivido ou elaborado, uma dor enrustida. A música expressa algo a partir especialmente da letra e da melodia, e isso aciona em quem a escuta outras possibilidades de se expressar também: seja cantando, dançando, chorando, refletindo. Uma cliente, por exemplo, que teve seu relacionamento rompido pelo namorado, relatou o quanto a música foi importante no seu processo de fortalecimento: “Só sabia chorar. Passei uma tarde inteira ouvindo a mesma música (a “nossa” música), repetidas vezes, para tentar esgotar o meu sofrimento. Cada refrão me fazia chorar mais e mais. Mergulhei na fossa, lavei a alma e à noite já estava mais tranquila. Consegui até mesmo colocar minha roupa mais bonita e ir a uma festa, por incrível que pareça; quando vi estava na pista de dança, curtindo outros tipos de música, isso levantou meu astral. Vi que o namoro podia até ter terminado, mas a minha autoestima não”.

Música é identificação?
Um pensamento, um convite, um sentimento ou declaração de amor: a letra de uma música tem o poder de nos conectar à ideia que ela traz, causando um processo de identificação. Muitas vezes, é como se a música traduzisse exatamente o que estamos sentido, ou o que gostaríamos de dizer. Seja qual for a forma encontrada pelo compositor – poética, racional, impactante, ideológica ou romântica – somos fisgados pelas palavras que são cantadas, nos tornando praticamente coautores, numa cumplicidade que só faz bem.

Música é memória?
A música está comumente vinculada aos momentos em que ela se faz presente: uma viagem, uma caminhada, um almoço em família, um lugar, uma pessoa, um jantar romântico... O momento pode até acabar, mas a música continuará tocando quantas vezes for preciso. E, ao ouvi-la de novo, ela causa um processo associativo, mnemônico, despertando para sensações as mais variadas: alegria, tristeza, esperança, saudade...