Superar traumas pode levar ao crescimento. Conheça histórias de quem sacudiu a poeira e deu a volta por cima

Tudo vai bem, até um evento inesperado chacoalhar o cotidiano. Mas não é o fim da linha: quem reagiu e superou situações difíceis conta que vale a pena lutar para voltar a sorrir

por Laura Valente 25/04/2018 10:12
Cristina Horta/E.M/D.A Press
A modelo Paola Antonini (foto: Cristina Horta/E.M/D.A Press)
Mais hora, menos hora, a realidade se mostra nua e crua, como afirma Julio Peres, psicólogo e doutor em neurociências e comportamento: “Em primeiro lugar, é preciso saber que a maioria das pessoas já sofreu ou sofrerá uma situação potencialmente traumática, desde tragédias como acidentes até situações cotidianas estressoras”. 
Porém, por pior que a previsão pareça num primeiro momento, o especialista garante ser possível reagir e superar a dor, num movimento que muitas vezes surpreende até mesmo os mais céticos quanto à capacidade de o ser humano se reinventar. “A superação envolve revisitar os próprios talentos, recursos e capacidades de enfrentamento, trazer à tona as memórias de autoeficácia, até que, com o tempo, o sujeito passe a colecionar novas memórias que superam as traumáticas. É como se ele estivesse atualizando a percepção para poder promover a resiliência”.
Aqui, conversamos com pessoas que viveram dramas pessoais de natureza diversa: a jovem Lee Miranda, vítima de depressão; a modelo Paola Antonini, que perdeu uma das pernas em um atropelamento; o executivo Luiz Gustavo Lamac Assunção, cego aos 29 anos após ser baleado durante um assalto e o sírio Nizar Kadar, cabeleireiro e maquiador de sucesso que saiu com a roupa do corpo da cidade natal Homs, a primeira daquele país a ser assolada pela guerra.
Em comum, a certeza de que sempre vale a pena lutar para voltar a sorrir. “Não podemos fazer nada quanto à morte, mas em relação às escolhas, aí sim, temos todo poder. Qual será a sua?”, questiona a menina que foi triste durante parte da adolescência e, hoje, aposta no autoconhecimento e na música para disseminar mensagens de cura e amor próprio.
Definitivamente, a frase de personagem infantil “Oh vida, oh céus, oh azar...” não faz parte do vocabulário da modelo Paola Antonini, que precisou amputar a perna esquerda após ser atropelada no réveillon de 2015, aos 20 anos, quando colocava as malas no carro para viajar com o namorado. “Nunca me vitimizei e nem fiquei martelando pensamentos como 'por que isso aconteceu comigo?'. Houve, sim, um mix de sentimentos, mas quando acordei após o acidente a primeira coisa que senti foi gratidão por estar viva. Desde o início, eu aceitei a segunda chance que Deus me deu”, revela. 
Totalmente crédula na capacidade de superação, termo que define como “dar a volta por cima, ver o lado positivo das situações difíceis e vencer as adversidades”, ela acredita que o acidente trouxe um novo significado para o próprio cotidiano. “Passei por uma situação bem difícil, de fato. Mas foi uma experiência que mudou minha vida para melhor: depois do acidente, comecei a prestar mais atenção a pessoas que são amputadas e não têm condições de comprar uma prótese, crianças que tiveram que amputar muito cedo por conta de alguma doença... Sinto que é um chamado mesmo, que é minha missão ajudar. Então, construí um novo sonho: o desejo de formar uma instituição e poder ajudar mais e mais pessoas. É recompensador ajudar o próximo, o mundo precisa mais disso. Se cada um fizer um pouco, se torna muito”. 
Sucesso nas redes - Paola conta que voltou a trabalhar cerca de seis meses após o acidente, e que a vida vai muito bem, obrigada. “Minha rotina, graças a Deus, é bem corrida. Viagens a trabalho, parcerias com grandes marcas, um canal no Youtube em que compartilho um pouco dessa experiência. E sempre que dá, eu gosto de dançar”. Os pensamentos negativos, afirma, passam longe de sua realidade. “Nunca tive raiva da pessoa que me atropelou e também não fiquei pensando nas possibilidades do que poderia ter acontecido se não tivesse feito isso ou aquilo. Simplesmente decidi seguir em frente”. O perdão, a fé e o apoio da família e dos amigos, claro, ajudaram bastante. “Eu perdoei. Como meu foco era minha recuperação, foquei minha energia em ficar boa logo.” 
Alto astral e referência de autoestima, a modelo usa as redes sociais para disseminar pensamentos positivos. “Todos temos dificuldades, mas o mais legal é tentar ver o lado positivo e acreditar que o momento difícil vai passar. Outra coisa pra gente refletir é nos aceitar como somos, sendo felizes e evitando a comparação com os outros. Vale muito a pena porque a vida é curta demais para preocupação com coisas pequenas.” 

Superando limitações 

 Depois de experiência também traumática – perder a visão ao ser baleado na cabeça durante um assalto -, Luiz Gustavo Lamac Assunção, administrador de empresas, sentiu a vida por um fio. “Achei que fosse um pesadelo e acordaria. Só quem vive uma situação assim sabe... Fiquei dias hospitalizado e, em casa, passei a lidar com falta de independência e autonomia, precisei reaprender a executar necessidades básicas como comer ou me locomover”, lembra. 
Com o tempo e o apoio incondicional da família, de amigos, da psicóloga Terezinha Sette e da empresa em que trabalhava, o executivo escreveu no livro Um Outro Olhar – Uma História Real de Superação: no Trabalho e na Vida, mensagem que vale para todos: “a existência é cheia de imprevistos, muitos traumáticos e até catastróficos, mas é possível superá-los com determinação, apoio da família, de Deus. Achamos que não há saída, mas se abrem novos caminhos”, defende.
 
Beto Novaes/E.M/D.A Press
Luiz Gustavo vive a emoção de ser pai (foto: Beto Novaes/E.M/D.A Press)
Tantos que Luiz se casou, virou pai de Gustavo, hoje com 3,5 anos, e passou a priorizar valores como qualidade de vida. Deixou o trabalho antigo e se tornou sócio da mulher, Thatiana Silva Bandeira de Melo, em uma empresa do ramo imobiliário. Usa o computador por meio de um programa específico para deficientes visuais, atualiza as redes sociais com frequência, malha com personal e, em casa, já realiza 100% das atividades sozinho, numa superação diária. Um dos programas preferidos, conta, é brincar com o filho. “Temos que seguir em frente, pois a vida vale a pena. Procuro pensar na metade do copo cheio e tenho a convicção de que todo mundo pode aprender a lidar com obstáculos, por mais que pareçam insuperáveis. Com persistência, as coisas vão entrando no lugar”. 

 
Quem canta os males espanta 

Muitas vezes, o sofrimento faz com que o sujeito cresça e descubra sua melhor versão; em outras, lateja, mas não impede a busca por dias melhores. Palavra de quem superou crises 
Jean Assis/divulgação
Lee Miranda: aposta no sertanejo inspiracional (foto: Jean Assis/divulgação )

Aos 30 anos, Lee Dicristian Teixeira Resende, jornalista e analista comportamental, adotou o nome artístico Lee Miranda para seguir com um novo projeto: cantar músicas para inspirar outras pessoas à cura e ao amor próprio. Nas letras do que ela chama de estilo sertanejo inspiracional, versa a respeito da vitória sobre a depressão, doença que viveu durante a adolescência. “Aos 13 anos, percebi que algo estava diferente comigo. Passei a me fechar, meu padrão de sono se inverteu, me sentia angustiada, triste, apática. Lembro de me olhar no espelho e questionar quem eu era e por que havia nascido naquele contexto. No decorrer desse processo, fui perdendo minha capacidade de concentração e destreza, me sentia completamente deprimida e desmotivada”. 
Lee conta ter percorrido inúmeros médicos e tratamentos, incluindo eletrochoque. “Fui diagnosticada com depressão, transtorno bipolar, até esquizofrenia. Tomei medicamentos, busquei tratamentos naturais e homeopáticos, mas nada funcionou. O que de fato me ajudou depois de 14 anos foi o processo de autoconhecimento apresentado pela terapeuta Renata Gaia e cursos que ela indicou”. A partir dali, a história mudou. “Em contato com minha essência, tomei consciência de quem eu era e de onde estava. As crises começaram a se espaçar até se extinguirem. O foco no autoconhecimento, o desejo ardente de me curar, o empenho próprio e a chama da minha luz divina fizeram com que eu vencesse todo esse processo. Hoje, vejo como mais importante perceber que a dor e as lágrimas serviram de aprendizado. Nunca acreditei que um dia sentiria gratidão pelo inferno que passei, mas sim, sou extremamente grata e tenho consciência que o que me tornei está completamente ligado ao que vivi ao longo desses 14 anos de busca e insanidade mental.”
Melhor versão - A arte, conta, foi um dos meios de reconexão consigo mesma. “Comecei a compor canções que expressavam de fato quem eu era e o que eu acreditava. Lancei recentemente o álbum Florescer, com canções que falam sobre os valores fundamentais da vida como o amor, a empatia, a fé, a esperança e, principalmente, sobre a importância do autoconhecimento. Também estou para lançar um livro em que compartilho reflexões em torno do meu processo de cura”.
Além da música e da escrita, a jovem também atua como analista comportamental. Formada em ferramenta conhecida como DISC, Lee ministra palestras em que fala sobre o próprio processo de cura e superação e lidera os cursos O Despertar da Consciência pela Música e o Mulheres que se curam e inspiram outras mulheres, ministrados no Espaço Somos Um. 
Olhando para trás, ela descreve o que considera um grande aprendizado: “Aprendi que nunca somos vítimas. Que temos que trazer pra gente a responsabilidade de transformar nossa própria realidade e criar um novo mundo de amor e harmonia interior. Existe, principalmente, um grande tesouro na dor e nos obstáculos, que podem ser determinante para nos fazer acessar todo nosso potencial e nossa melhor versão. É aquilo que dizem: temos poder sobre as escolhas. Qual será a sua? Vida ou morte? Loucura ou sanidade? Integridade ou mediocridade? Aceitação ou vitimização? Saúde ou doença?”


Sorriso e trabalho 

Proprietário de um salão de beleza em Homs, na Síria, o jovem maquiador e cabeleireiro Nizar Kadar se viu obrigado a deixar para trás a cidade natal e uma rotina de sucesso levando apenas a roupa do corpo. Ele, um dos irmãos e quatro amigos se refugiaram da guerra que matou vizinhos e parentes. Chegou primeiro ao Líbano, depois em BH, onde fixou residência há quatro anos. “Fugi de bombas, do terror, da violência. Estava perigoso andar nas ruas, as clientes sumiram do salão, havia assaltos. Perdi três primos e cheguei a presenciar ataques com mortes”. Hoje, a realização do sírio é “morar com paz e trabalhar bem”. 
Beto Novaes/E.M/D.A Press
Sírio já fez clientela na cidade (foto: Beto Novaes/E.M/D.A Press)
 
Aqui, Nizar conheceu uma conterrânea, Hedeeal. Casaram-se no ano passado, com direito a cerimônia e festa no estilo árabe. Trabalhando em um salão na Savassi, conseguiu trazer os pais para a capital mineira e já fez novos amigos e clientes. “Mudei tudo, incluindo a língua. Fica a tristeza de saber que Homs nunca mais será a mesma, e a vida estava bonita lá. Também sinto falta dos amigos que se espalharam pelo mundo, mas as redes sociais diminuem as distâncias, os brasileiros são um povo muito bacana e o melhor remédio para não pensar no que ficou para trás é trabalhar, contar com o amor de quem está próximo e lembrar com carinho de quem não está. Nunca esquecerei, meu sonho é voltar para a minha terra, mas enquanto essa hora não chega, o negócio é não reclamar, encarar as dificuldades, superar e sorrir, sempre”. 

O cérebro também reage

Especialista afirma que significar e ressignificar traumas levam a mudanças por meio das quais o sujeito pode experimentar um cotidiano considerado até mais feliz que o anterior
Arquivo pessoal
Júlio Peres (foto: Arquivo pessoal)

Julio Peres, psicólogo e doutor em neurociências e comportamento, autor do livro Trauma e Superação: o que a psicologia, a neurociência e a espiritualidade ensinam (Editora Roca, 316 páginas), não descobriu a roda, mas, junto a equipe especializada, conseguiu provar cientificamente, por meio de mapeamento cerebral, que pacientes traumatizados por assaltos, acidentes, violência ou qualquer outro evento considerado estressor se beneficiam da psicoterapia. “Os pacientes que fizeram psicoterapia conseguiram rotular e sintetizar mais positivamente o evento e passaram a ter uma melhor orientação temporal e espacial da experiência, ou seja, o trauma passou a ser um acontecimento pertencente ao passado”, explica. Ainda segundo o especialista, a superação do trauma ocorre quando o indivíduo tece um novo significado para a experiência. A seguir, ele discorre sobre o tema. 

Quando o sr. começou a estudar os temas traumas e superação? Quais foram as principais motivações?
Tenho 28 anos de prática clínica e desde o início me interessei pelos temas traumas psicológicos e mecanismos que favorecem a superação. A motivação é ser um instrumento para aliviar a dor e, se possível, favorecer a libertação definitiva dos sofrimentos tão comuns no cotidiano de todos, queixas e dores que pacientes relatam nos consultórios. É uma espécie de chamado e, definitivamente, uma vocação. 

O sr. diz que as tragédias fazem ou farão parte da vida de todos. Confere? 
Estudos populacionais e epidemiológicos revelam que toda pessoa sofreu ou sofrerá eventos traumáticos: perda de entes queridos, acidentes, traições, dificuldades nos âmbitos pessoal ou profissional. O trauma psicológico não escolhe faixa etária e nem condição social ou econômica. Acontece para a massiva maioria dos humanos. 

Quais são os possíveis mecanismos de superação de um trauma?
Trabalhamos com vários mecanismos como sensibilizar o sujeito traumatizado para que procure uma aliança de aprendizado com o evento doloroso. Também há um despertar da consciência para a importância e o benefício de valorizar ocorrências cotidianas como conviver com a família, respirar, tomar banho, voltar a sua casa. Ainda a busca de novos objetivos que façam sentido para a existência do indivíduo já que é comum o trauma o chacoalhar para um bem maior. Já a religiosidade e a espiritualidade favorecem uma leitura que leve algum significado ao ocorrido, evitando que o indivíduo se perca no caos. E isso independentemente de crença.

Desabafar é um mecanismo válido?
É o primeiro passo, mas não o único. Posso desabafar me vitimizando, ampliando a dor. Ao contrário, o ato de significar e ressignificar o evento como algo que favoreça o crescimento pessoal, no lugar de sucumbir ao mesmo, buscando novas perspectivas, leva à superação.

Além da psicoterapia, o que as pessoas podem fazer para superar um trauma? 
Evitar a autotomização é uma deles. O que você diz para você mesmo e para as outras pessoas pode tanto aliviar como exacerbar o sofrimento. Se você acreditar que o futuro trará conforto e será melhor, também é possível trazer o melhor para o presente. É preciso descobrir a importância de seguir adiante, de fortalecer novos objetivos, de engajar-se num novo projeto: desta forma o trauma vai perdendo força. Além disso, buscar o aprendizado que a experiência dolorosa pode trazer e, principalmente, falar da dor de forma adequada com pessoas que não interfiram o tempo todo no que você diz. Por fim, é essencial acreditar que vivenciar um trauma é um momento de travessia e que a vida pode ser melhor no futuro.

É comum as pessoas retomarem o gosto pela vida? 
Este tipo de situação pode ajudar as pessoas a revisitarem seus valores, perspectivas e significados que elas dão à própria vida; a despeito do sofrimento, os eventos traumáticos são chacoalhadas que a vida dá e que despertam o indivíduo para novas reflexões e comportamentos, que colaboram, depois de algum tempo, para uma qualidade até superior de vida. Depois que o processo de superação é concluído, a maioria dos meus pacientes costuma dizer que, se pudessem ter mudado alguma coisa do passado, não o fariam, porque o trauma vivido os ensinou muito. 

Em que medida a vitimização e ou a revolta dificultam o processo de superação?
Dificultam severamente. Até que o indivíduo deixe de responsabilizar terceiros e assuma a sua responsabilidade em melhorar e crescer. Responsabilizar os outros leva a permanência do sofrimento. O mundo não vai modificar, mas você se responsabilizar e cuidar da dor para que possa estar no mundo com uma qualidade melhor.

Trata-se de uma questão de escolha?
Muitas vezes é uma questão de escolha, quando o indivíduo busca a psicoterapia, por exemplo. E muitas vezes questão de necessidade, pelo nível insuportável de sofrimento. 

O sr. está produzindo um documentário na temática superação, certo? Por favor, fale sobre o projeto.
Minha motivação é disponibilizar vídeos que contam a história de pacientes e o que aprenderam na psicoterpaia para chegarem à superação. Minha expectativa é lançar em 2019, mas ainda estamos buscando patrocínios.