Falta de lei para postagens na internet pode incentivar alcoolismo

Estudos mostram que postagens com fotos dos amigos no bar ou com propaganda de bebidas podem estimular o consumo de álcool entre jovens. Segundo especialistas, a falta de lei para esse tipo de publicação agrava o problema

Ilustração/Valdo Virgo
(foto: Ilustração/Valdo Virgo)

Se os adultos que bebem excessivamente tentam esconder esse comportamento a todo custo, entre os jovens a coisa é bem diferente. Para eles, postar foto com uma lata de cerveja na mão, virando o copinho de pinga, brindando com os amigos ou até mesmo visivelmente embriagados parece um atestado de “gente boa”. O que poderia ser apenas uma tentativa de aceitação pelo grupo esconde, porém, uma armadilha perigosa. De acordo com pesquisas recentes, publicações sobre álcool nas redes sociais têm uma influência negativa sobre usuários, com aumento de consumo e de problemas associados à bebida, como faltas à escola e envolvimento em brigas.

Terra de ninguém, carente de mecanismos regulatórios, as redes sociais também são um poderoso outdoor para a publicação de anúncios de bebidas, sem as restrições impostas a outros meios eletrônicos - no Brasil, a tevê só pode veicular propaganda de destilados depois das 21h30, por exemplo. Além das postagens dos usuários, os especialistas em dependência química se preocupam com os efeitos sobre os mais jovens das campanhas de álcool exibidas em sites como Facebook, Twitter, Instagram e Youtube.

Estudiosa do tema, Theresa Marteau, diretora da Unidade de Pesquisa em Comportamento e Saúde da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, diz que 90% dos jovens de 15 a 24 anos e mais de 40% na faixa dos 6 aos 14 anos que acessam a internet têm perfil nas redes sociais. No Brasil, somente o Facebook é acessado por 69% dos usuários de até 29 anos. Uma pesquisa recente sobre anúncios de cervejarias publicada por Marteau na revista Alcohol and Alcoholism conclui que é preciso regulamentar a propaganda de bebidas para proteger os jovens. Propaganda, nesses casos, incluem vídeos promocionais, games, receitas e competições.

De acordo com Marteau, a natureza interativa desse tipo de anúncio faz dele mais efetivo do que a publicidade promocional. “Seja ou não deliberado, nossos resultados mostram que as crianças não estão protegidas do marketing on-line do álcool. Materiais interativos aumentam ainda mais o impacto da propaganda”, diz.

Muitas vezes, a melhor propaganda não é feita pelos anunciantes, mas pelos próprios usuários das redes. Seja no Facebook, no WhatsApp ou no stories do Instagram, as postagens dos jovens atribuindo valores positivos à bebida têm preocupado especialistas. “Se o consumo está associado à sensação de bem-estar e à adequação social, isso pode gerar a impressão de que, para se atingir esses mesmos objetivos, deve-se consumir álcool”, ressalta a psiquiatra Helena Moura, especialista em dependência química (leia Palavra de especialista).

A exposição a esse tipo de conteúdo é imensa, conforme um trabalho norueguês divulgado no mês passado na revista Addictive Behaviors. No maior estudo quantitativo sobre esse tema, os pesquisadores da Universidade de Bergen investigaram o contato de 11.236 universitários com posts a respeito de álcool gerados pelos próprios usuários das redes sociais. Os resultados mostram que 96,7% deles já haviam sido expostos a posts relacionados à bebida, sendo que, em 81% dos casos, a mensagem era positiva. Por outro lado, em apenas 40% das vezes, essa associação foi negativa. “Podemos supor que a frequência à exposição é um fator importante, à medida que exposições mais frequentes podem, particularmente, fortalecer interpretações sobre o uso de álcool”, destacaram os autores.

Para o presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), fundador e supervisor do Programa do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas da Universidade de São Paulo e professor titular da Faculdade de Medicina do ABC, Arthur Guerra, embora o fenômeno das redes sociais seja recente, o estudo norueguês é um forte indicativo do tamanho do problema. “Há pouquíssimos estudos sobre isso, mas o da Universidade de Bergen mensurou a relação de álcool e a exposição nas mídias sociais. E a grande parte do conteúdo reflete o aspecto positivo, de que o álcool é legal, faz você aceito pelo grupo”, afirma.

O médico lembra que essa associação sempre foi feita pelos jovens, mas diz que, agora, a exposição à bebida e a esse tipo de mensagem é muito mais frequente. “No meu tempo, o jovem tinha contato com o álcool quando saía para dançar e usava a bebida para perder a timidez. Nas redes sociais, o contato com a bebida é o tempo todo”, exemplifica. Para ele, as novas mídias exigem uma nova abordagem do assunto. “Não adianta dizer para o jovem que ele vai morrer por causa do álcool ou vai se tornar dependente. Deveria haver um esforço maior de informação, na linguagem dele.” Guerra acredita que os youtubers - apresentadores de canais no Youtube, seguidos por milhões de usuários - poderiam desempenhar esse papel. “Eles são lideranças e poderiam passar a mensagem de que, se você quer beber, que beba, mas de forma moderada”, afirma.

Cisa/Divulgação
(foto: Cisa/Divulgação)
Três perguntas para...

Ana Cristina Braz psicóloga, mestra em psicologia em saúde

1) Há literatura científica suficiente para se concluir que as redes sociais exercem influência sobre o comportamento de consumo de álcool?


As pesquisas sobre esse tema ainda são iniciais, mas já existem evidências de que os conteúdos sobre bebidas alcoólicas nas redes sociais podem influenciar o consumo dessa substância, especialmente entre jovens.

2) Principalmente no caso dos jovens, as redes sociais têm um poder maior de influência que a mídia tradicional, como propagandas de tevê e em revistas?

Ainda não há estudos científicos comparando a magnitude da influência de diferentes meios de comunicação no consumo de álcool. São mídias diferentes, portanto, seu impacto no comportamento das pessoas provavelmente também é. No caso das redes sociais, além de anúncios publicitários, há conteúdos produzidos pelos próprios usuários dessas plataformas. Além disso, há evidências científicas de que os conteúdos sobre álcool podem variar qualitativamente dependendo da rede social em que são postados. Todo conteúdo sobre álcool veiculado nas redes sociais tem o potencial de influenciar o consumo dessa substância.

3) No caso das postagens feita por jovens, o que mais preocupa?

No caso de postagens de amigos, o hábito de postar fotos, vídeos e textos expondo comportamentos de risco, como beber excessivamente, tem sido associado a diversas consequências negativas, particularmente entre o público jovem. Esses conteúdos são preocupantes porque podem levar outros jovens a superestimar a frequência e a quantidade de álcool que seus amigos bebem e, como resultado, os influenciar a reproduzir esses comportamentos.

Palavra de especialista

Helena Moura, psiquiatra especialista em dependência química

Publicidade escondida

“Muitas vezes, a publicidade sobre álcool e tabaco não está evidente, como nas campanhas no horário comercial. O cigarro, por exemplo, explorou muito o cinema. Atualmente, as novas mídias, como Facebook e Instagram, têm explorado isso também. Um artista pode postar uma foto sua em um local glamouroso, segurando a garrafa de uma determinada marca de espumante. E estudos recentes têm mostrado aumento no conteúdo relacionado a bebidas em vídeos do Youtube — 45% dos vídeos de música têm conteúdo relacionado ao álcool. As redes sociais contribuem para o consumo de álcool pelo efeito de aprendizagem social. Se o consumo está associado à sensação de bem-estar e à adequação social, isso pode gerar a impressão de que, para atingir esses mesmos objetivos, deve-se consumir álcool. Atualmente, se discute muito a regulamentação para a propaganda de bebidas nas mídias sociais. A forma de regulamentar deve ser discutida também, pois é mais difícil monitorá-las. Restrições já aduram em mídias convencionais: a proibição de conteúdos infantis nas campanhas de álcool e cigarro são exemplos que surtiram efeito.”