Novela atribui ao coaching habilidades fora de sua alçada e causa polêmica

Profissionais são aptos a melhorar o desempenho das pessoas em diversas áreas, mas, para especialistas, não podem tratar traumas e fazer hipnoterapia, como abordado em trama da Globo

por Laura Valente 26/02/2018 13:11
Ilustração/Maurenilson Freire/CB/D.A Press
(foto: Ilustração/Maurenilson Freire/CB/D.A Press)
Nas últimas semanas, a forma como a novela O outro lado do paraíso (Globo) explorou um drama da vida real causou polêmica e, segundo especialistas, vem prestando um desserviço à sociedade brasileira ao atribuir a um coaching habilidades para as quais não é formado e, segundo as leis brasileiras, não poderia atuar, como tratar um trauma psicológico e usar hipnoterapia. Na trama de Walcyr Carrasco, a personagem Laura (Bella Piero), que sofreu abuso sexual na infância, faz sessões com a advogada e coaching Adriana (Julia Dalavia), o que imediatamente causou reação em notas divulgadas por entidades como os conselhos federais de medicina e de psicologia, e mesmo pela Sociedade Brasileira de Coaching.

“A intervenção no sofrimento psíquico, nos transtornos mentais ou nas vulnerabilidades emocionais exige uma formação acadêmica da área da saúde, na maioria das vezes acrescida de especializações específicas, que exigem o domínio de abordagens terapêuticas fundamentadas cientificamente, além de estágios supervisionados e processos psicoterápicos pessoais”, explica Rosane Granzotto, integrante do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Assim, a psicóloga reforça que em hipótese alguma a formação em coaching habilita um profissional que não seja das áreas citadas a orientar indivíduo que tenha sofrido trauma de qualquer ordem.

Outro equívoco do texto novelesco é a aplicação da hipnoterapia por um coaching, já que, segundo o Conselho Federal de Medicina, no Brasil, deve ser “executada por médicos, odontólogos (para dor) e psicólogos, em suas estritas áreas de atuação”. O confuso texto da novela também levou a emissora a divulgar nota na qual alegou “que o enredo da personagem quer mostrar o processo pelo qual passa uma pessoa que precisa de ajuda, recorrendo a diferentes e variadas formas de apoio e terapias, das mais às menos ortodoxas”. Ainda assim, permanece sendo considerado “irresponsável, mercadológico e antiético”, na afirmação de Rosane e de outros profissionais e entidades.

“Isso porque sugere, com certo sensacionalismo, que uma questão da complexidade do sofrimento gerado pelo abuso sexual na infância possa ser tratada de forma rápida e simplista por uma profissional da área do direito com formação em coach. A cena induz o espectador a acreditar que esse tratamento, porque é assim nominado na novela, tem caráter psicoterapêutico e pode resolver questões relativas ao sofrimento psíquico intenso, as quais são objeto de estudo e exercício profissional da psicologia ou da psiquiatria, pois são os que têm a habilitação adequada para essas intervenções”, reforça a profissional.

FINALIDADE

Raquel Cunha/TV Globo/Divulgação
Personagem Laura (Bella Piero) fez hipnose com a advogada e coaching para lembrar dos abusos sofridos com o padrasto Vinícius (Flávio Tolezani) (foto: Raquel Cunha/TV Globo/Divulgação)
A partir de tantas críticas, o debate levanta uma questão crucial: afinal, quais são as atribuições de um coach? Para que serve o processo?. Quem esclarece é Villela da Matta, um dos precursores da especialidade no Brasil, presidente e fundador da Sociedade Brasileira de Coaching (SB Coaching). “Coaching é um processo que aumenta os resultados positivos de indivíduos, times e empresas por meio do uso de técnicas e ferramentas cuja prática está fundamentada em estudos de diversas áreas e eficiência comprovada em melhorar a performance em qualquer âmbito desejado. A finalidade fundamental do coaching é atingir uma meta ou objetivo e, para isso, um profissional habilitado (o coach) conduz o cliente (o coachee) a buscar novas compreensões para alcançar seus maiores desejos, baseando-se em um processo estruturado com início, meio e fim.”

Ainda de acordo com ele, durante o processo o cliente é levado a práticas para além de pensar sobre seus comportamentos. “Ele descobre que tem força de criar hábitos e de romper as barreiras da procrastinação para, assim, partir para a ação”, explica. Sobre a trama na novela, Matta afirma que a inserção do assunto é controversa e deixou a desejar. “Os erros são muitos – e perigosos. É o caso, por exemplo, de a hipnose e o coaching serem usados como forma de tratar traumas. O coach pode atuar em muitas áreas: carreira, empresas, vida, educação, política, finanças, enfim, em tudo em que seja possível estabelecer um objetivo concreto e mensurável. Porém, o coach, embora utilize conceitos de diversas áreas da psicologia, não trata nada e de modo algum se confunde com essa disciplina. Traumas como o mencionado na novela são questões exclusivas de psicólogos e outros profissionais de saúde, e nunca do coach.”

Saiba mais

A Sociedade Brasileira de Coaching lançou o e-book Tudo sobre coaching, disponibilizado gratuitamente na web pelo link www.sbcoaching.com.br. Confira alguns destaques:

Coaching: É um processo que aumenta os resultados positivos de indivíduos, times e empresas por meio do uso de técnicas e ferramentas.

Prática: A prática está fundamentada em estudos de diversas áreas que comprovam sua eficiência em melhorar a performance em qualquer âmbito desejado. Entre as bases científicas do coaching estão as psicologias cognitiva,comportamental e a positiva.

Finalidade: Atingir uma meta ou objetivo, baseando-se em um processo estruturado com início, meio e fim.

Processo: Durante o processo de coaching aprende-se pela ação - e aprende-se com a ação. Que ação? Experiências de fato + autoconsciência. Esse é o diferencial das técnicas de coaching. No lugar de apenas pensar sobre seus comportamentos (ou projetá-los sobre os outros), o cliente descobre que é capaz de moldá-los, que tem força de criar hábitos e de romper as barreiras da procrastinação e da lamentação - ou do fazer ilusório.

Lembre-se:

Segundo a executive coach e professora da Fundação Getulio Vargas Anna Cherubina Scofano, além da formação como coach em uma escola de coaching credenciada à International Coach Federation (ICF), as principais credenciais de um profissional da área são as referências de outros clientes; suas experiências com uma quantidade razoável de horas/atendimento realizados. Fique de olho!

Arquivo Pessoal
(foto: Arquivo Pessoal)
Três perguntas para...
Anna Cherubina Scofano - executive coach e professora da Fundação Getulio Vargas

Quais são as habilidades específicas de um coach?

O coach precisa ter grande habilidade em ouvir, ser ético e íntegro como pessoa. Além do domínio técnico e a experiência necessária à devida aplicação das técnicas adequadas durante o processo do coaching.

Em que áreas pode atuar?

O coach pode atuar em qualquer área desde que o seu coachee, cliente, tenha a demanda de desenvolver alguma competência em específico. Exemplo, a competência de planejamento, que permeia todas as áreas e profissões. Logo, ele pode estar voltado ao planejamento financeiro, de vida, de carreira, de negócios e outros, mas a essência a ser desenvolvida é a competência de planejamento.

É possível um coach atuar em traumas psicológicos como o que sofrem vítimas de abuso sexual?

Nunca. O coach não tem as credenciais, tampouco a formação para tal. Seria minimamente incompatível tal condução, além de reprovável. Traumas ou problemas de ordem psíquica ou psicológica devem ser tratados por especialistas, como psicólogo ou psiquiatra.

O coach está habilitado a usar ferramentas como a hipnose para tratar clientes/pacientes?

Não, a formação do coach o habilita, exclusivamente, para conduzir o coachee, por meio de técnicas e ferramentas, para o desenvolvimento de competências.

Que leitura a senhora faz acerca da polêmica?

A polêmica é interessante do ponto de vista do alerta para a vida real, uma vez que vivemos em um cenário em que o coaching se transformou em um modismo: todos se denominam coach e acham que sabem de que se trata. No entanto, denota o conhecimento superficial sobre o tema. Grande parte das pessoas ainda desconhece o objetivo e a metodologia da prática, o que é uma pena, já que o coaching gera excelentes resultados para quem deseja crescer desenvolvendo competências.