No Brasil, lei permite só a barriga solidária e dificulta geração de filhos por casais masculinos

Já entre as mulheres, a demanda é crescente

por Laura Valente 26/09/2017 13:00
Beto Novaes/EM/D.A Press
Marco Melo, diretor da Clínica Vilara, diz que, a cada ano, observa aumento de novos casos referentes à produção independente e tratamentos de casais homoafetivos (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

A lista de celebridades que vivem relação homoafetiva e tiveram filhos cresce a cada ano, principalmente em países que permitem a prática da barriga de aluguel. Basta lembrar o cantor Ricky Martin, pai dos gêmeos Valentino e Matteo, e o astro Elton John e seu marido, David Furnish, pais dos pequenos Zachary Jackson Levon Furnish-John e Elijah Joseph Daniel Furnish-John.

Aqui, no Brasil, a legislação permite apenas a barriga solidária, o que muitas vezes dificulta a geração de filhos por casais masculinos. Já entre as mulheres, a demanda é crescente desde a publicação do atual Código de Ética Médico, elaborado pelo Conselho Federal de Medicina, que autoriza a realização de tratamento de reprodução assistida em casais homoafetivos, entre outros termos. “Após a publicação do Código de Ética Médico, em 2015, as clínicas puderam começar a realizar tratamentos de reprodução assistida tanto em mulheres solteiras (produção independente) quanto em casais homoafetivos”, explica Marco Melo, especialista em reprodução assistida e diretor da Clínica Vilara.

Por ser uma possibilidade recente, o médico diz que ainda não há estatísticas sobre o número de casais brasileiros que recorreram a tratamentos desde então, mas na prática experimenta uma demanda que vem se revelando significativa. “A cada ano, observamos aumento de cerca de 15% a 20% de novos casos referentes à produção independente e tratamentos de casais homoafetivos. Entre os casais de mesmo sexo, a procura é maior entre mulheres, fato que relaciono pela maior simplicidade e facilidade de realização, uma vez que falta a elas apenas o sêmen, facilmente obtido em um banco de doadores. Já para os casais do sexo masculino é necessário um útero (aí, temos que recorrer a parentes que aceitem gerar o bebê) e os óvulos, o que muitas vezes dificulta o tratamento”, explica.

Ainda assim, ele avalia o cenário como positivo. “Vejo avanços em todos os aspectos envolvidos com a constituição de famílias por casais homoafetivos, sejam eles no campo sociocultural, que passa pela maior aceitação da sociedade, sejam nos campos jurídico e científico. Experimentamos um período em que há revisão de gpreconceitos, queda de barreiras científicas e jurídicas. Estamos num caminho sem volta”, contextualiza.

PROCEDIMENTOS

Para casais homoafetivos do sexo feminino, o médico detalha ser necessário recorrer a um banco de sêmen para viabilizar a inseminação intrauterina ou a fertilização in vitro. No caso de casais do sexo masculino, será preciso recorrer a um banco de óvulos (a doadora deverá ser anônima, não pode ser parente, e ser voluntária, quer dizer, não pode vender seus óvulos) e a um parente até quarto grau (prima) para ceder temporariamente o útero para que se desenvolva a gestação. Nesse caso, somente a fertilização in vitro poderá ser realizada. “No caso de casais homoafetivos do sexo feminino, o fator mais importante continua sendo a idade daquela que vai 'entrar' com os óvulos no tratamento. No caso dos homens, os resultados costumam ser mais satisfatórios, uma vez que se recorre à doação de óvulos. Uma condição imperativa para ser doadora é ter menos de 35 anos.”

Importante reforçar que nenhuma técnica de reprodução assistida garante o sucesso da gravidez. “Os resultados são os mesmos obtidos em casais heterossexuais”, reforça Melo. Arremata o médico Marcos Sampaio: “Segundo publicação da Sociedade Europeia de Medicina Reprodutiva, com dados referentes a 2015, a taxa global de sucesso de gravidez via fertilização in vitro (em mulheres de todas as faixas etárias) é de 30% a 32%, com uso de óvulo congelado ou fresco. Já entre mulheres de até 35 anos, com bom prognóstico (boa qualidade embrionária e bom número de embriões), a taxa pode chegar a 55% de sucesso”.

PALAVRA DE ESPECIALISTA
Selmo Geber - médico

» Entenda a criopreservação de óvulos 

Jair Amaral/EM/D.A Press - 15/7/16
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press - 15/7/16 )

Segundo Selmo Geber, especialista em reprodução assistida da Clínica Origen, a indicação é para mulheres que querem adiar a maternidade ou que foram submetidas a tratamentos de câncer ou cirurgia ovariana. As mulheres nascem com um número definido de óvulos, o que significa que são finitos e têm “prazo de validade” preestabelecido pela própria genética individual. Uma tentativa de preservar a qualidade dos gametas por mais tempo é a criopreservação ou congelamento de óvulos. “A conservação dos gametas femininos (óvulos) tem como principal indicação o desejo de postergar a gravidez para um período em que a reserva ovariana se encontra diminuída ou esgotada”, afirma o médico. Além dos casos em que se quer adiar a maternidade, o médico indica a criopreservação para as mulheres submetidas ao tratamento do câncer, no qual procedimentos como a quimioterapia, radioterapia e cirurgia para retirada dos ovários podem comprometer ou esgotar a reserva de óvulos. Segundo o especialista, as taxas de gravidez para congelamento de óvulos são semelhantes às obtidas para fertilização in vitro (FIV), variando de 10% a 50%, de acordo com a idade em que for realizado o congelamento dos óvulos. Quando houver o desejo de engravidar, os óvulos serão desvitrificados e um espermatozoide será injetado em cada um deles para formação de embriões e posterior transferência ao útero.

Esperança para soropositivos

Quando conheceu um rapaz e se apaixonou por ele, F.G, de 45 anos, não imaginou que ele era soropositivo. A revelação, no entanto, não foi empecilho para o casamento, que já dura mais de 15 anos. No decorrer da relação, o desejo de gerar filhos existia, mas era visto como um sonho impossível. Qual não foi a surpresa durante uma consulta de rotina em que o ginecologista informou que ela e o marido poderiam, sim, gerar crianças. “O médico me explicou que seria possível 'lavar' o sêmen e depois fazer uma fertilização in vitro.”

Hoje, o casal tem filhos gêmeos, saudáveis, que estão com 9 anos. “Fiz duas tentativas frustradas e engravidei na terceira, em que foram implantados quatro embriões. Hoje, vejo minha experiência e o amor entre casais sorodiscordantes como normal. A chegada dos filhos foi um presente para toda a família, muito festejada, pois ninguém sabia que poderia ocorrer. Os pais dele não imaginavam que teriam netos, então foi uma reviravolta e uma conquista muito celebrada por todos nós”, relata.

“O HIV é uma doença que tem controle, tratamento, e os casais conseguem, em geral, uma vida normal. Quando eles vão tentar engravidar, a reprodução assistida pode ajudar e muito. Nesse caso, será necessário procurar um especialista, porque, dependendo da carga viral e de outros fatores de infertilidade associados ou não, eles podem ter relação em casa com um dos parceiros utilizando medicamento para evitar a transmissão ou recorrer, ainda, ao bebê de proveta”, explica Ines Katerina Damasceno, diretora da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais (Sogimig).

Ela reforça ainda a importância do acompanhamento em todas as etapas da gravidez para minimizar riscos. “Desde que a mulher faça um pré-natal adequado, engravide no momento ideal, utilize medicamento retroviral durante toda a gravidez, o risco para o feto é menor que 1%. Algumas medidas são necessárias: a paciente não pode amamentar, o parto normal é indicado somente quando a gestante tem uma carga viral muito baixa e precisa ser acompanhada por especialista.”

Por fim, a médica revela que já atendeu casais como F. e outros com diagnóstico positivo para o HIV. “Existe um estigma nos pacientes soropositivos. No entanto, são casais que podem, sim, seguir com o sonho de gerar filhos. Não podemos excluir esses casais e proibi-los de engravidar, pelo contrário - devemos incentivar, pois é uma vida normal, e, dessa forma, a gestação deve ser estimulada. Claro, sempre a com devida orientação do especialista, para otimizar as chances de gravidez e diminuir o risco de transmissão do vírus”, pondera. A médica lembra ainda que nem sempre a paciente vai engravidar na primeira tentativa, “mas o sucesso do tratamento é viável porque eles não são inférteis”.

Prova vem dos gêmeos gerados por F. e o marido, crianças “mágicas”, caracteriza a mãe. E desabafa: “A vida a Deus pertence. A gente acha que está no fundo do poço, quando descobre que não é bem assim, que tudo tem um porquê. Até me emociono de dizer: às vezes, são tantos problemas que vemos a felicidade como algo impossível, e de repente aquilo é superado, voltamos a sorrir. Então, é importante pensar além”, encerra.

Técnica de reprodução assistida

» Tratamentos de baixa complexidade

Coito programado e a inseminação intrauterina

O coito programado consiste em estimular a ovulação com medicamentos, acompanhar o período fértil, por meio de ultrassom, e marcar o dia certo para se manter a relação sexual. Sua maior indicação é a dificuldade de ovular ou, até mesmo, de coincidir as relações sexuais com o período fértil da mulher, quer seja por motivo de viagens e trabalho, quer seja por irregularidade do ciclo menstrual, que atrapalha o cálculo correto dos dias mais férteis.

Inseminação intrauterina

Também faz uso da medicação para estimular a ovulação e os controles ultrassonográficos para determinar o período fértil. A diferença é que, uma vez estabelecido o dia da ovulação, o casal retorna à clínica para fazer a inseminação, quer dizer, injeção dos espermatozoides beneficiados no laboratório dentro da cavidade uterina. Geralmente, está indicada para aqueles homens que têm baixa concentração de espermatozoides móveis.

» Tratamentos de alta complexidade

Fertilização in vitro (FIV) ou injeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI)

A fase inicial desses tratamentos é a mesma. Consiste em usar medicamentos para estimular a ovulação, fazer os controles ultrassonográficos e realizar a punção ovariana para a coleta dos óvulos produzidos. É um procedimento que se realiza em ambiente hospitalar, sob anestesia, rápido, sem haver a necessidade de internação da paciente. Os óvulos obtidos serão fertilizados pelos espermatozoides por dois modos:

• FIV: consiste em colocar um óvulo e cerca de 70 mil espermatozoides ao redor, esperando que um entre e fecunde o óvulo por conta própria;

• ICSI: seleciona os melhores espermatozoides, que são injetados, por meio de um micromanipulador, nos óvulos. Essas técnicas se aplicam a casos mais graves de infertilidade, tais como uma baixa concentração e/ou motilidade dos espermatozoides, obstrução das tubas, endometriose e outros problemas.

Fonte: Marco Melo, especialista em reprodução assistida e diretor da Clínica Vilara