Com o tempo, o homem deixa de aproveitar as fases em que o cérebro processa a memória e a cognição

Para cientistas dos EUA, a dificuldade no sono pode estar ligada ao Alzheimer

por Vilhena Soares 08/05/2017 17:10

Ilustração/Valdo Virgo/CB/D.A Press
(foto: Ilustração/Valdo Virgo/CB/D.A Press)

Idosos geralmente dormem menos que os jovens. Não têm tempo para perder com o sono, diz o senso comum. A ciência, porém, alerta para o perigo do costume. Ao fazer uma revisão de pesquisas que investigaram minuciosamente o descanso dos mais velhos, cientistas dos Estados Unidos concluíram que, à medida que envelhece, o ser humano vai encontrando dificuldade de aproveitar o sono não REM, uma fase importante para a saúde do cérebro. A equipe acredita que mais investigações sobre o tema são necessárias, mas ressalta que entender esse processo ajudará a desvendar doenças cognitivas mais comuns na terceira idade, como o Alzheimer.

Dúvidas quanto à quantidade e à qualidade do sono de idosos sempre rondaram a área médica. Segundo os autores, intriga o fato de ser pouco comum ouvir de adultos mais velhos que eles estão se sentido sonolentos ou privados de sono, mesmo quando dormem poucas horas. Uma degradação natural do cérebro estaria ligada a esse comportamento. “Os neurônios no hipotálamo que promovem o sono vão morrendo, levando a uma capacidade reduzida de gerar sono estável, enquanto outros centros no tronco encefálico que promovem o sono estável e o despertar também se deterioram”, explica Bryce Mander, coautor do estudo, publicado recentemente na revista Neuron.

Segundo o também pesquisador da Universidade da Califórnia, os adultos mais velhos não sofrem redução na necessidade de sono. Na verdade, a capacidade para gerá-lo vai sendo comprometida. “Os idosos, portanto, têm uma necessidade de dormir que não é atendida”, complementa. Ao medir as ondas cerebrais de adultos mais velhos, investigadores de um dos estudos analisados por Bryce Mander e a equipe perceberam um comprometimento na etapa de sono chamada não REM. (veja arte) “O sono fica mais fragmentado à medida que você envelhece. O tempo que você gasta nos estágios mais profundos, em particular o não REM, é dramaticamente reduzido. Mesmo passar de um estágio para outro se torna menos previsível e mais desorganizado”, detalha o pesquisador.

Aos 30


O processo, porém, antecede a velhice. Segundo os pesquisadores americanos, a perda do sono profundo se inicia por volta dos 30 anos e vai se intensificando. “A diferença entre adultos jovens e adultos de meia-idade é maior do que a diferença entre adultos de meia-idade e os mais velhos. Parece haver uma mudança muito grande na meia-idade que continua à medida que envelhecemos”, explica Bryce Mander.

Para o investigador, a constatação pode ser, inclusive, usada como uma ferramenta de prevenção.“É fato que, em problemas como as demências neurodegenerativas, a perturbação do sono é mais pronunciada nos estágios iniciais do processo da doença. Isso indica que a quantificação de diferentes tipos de distúrbios do sono pode ser útil para o desenvolvimento de biomarcadores e novas intervenções para promover envelhecimento mais saudável.”

Hugo Gonçalves/Esp. CB/D.A Press
Anastasia, de 65 anos, dorme cerca de oito horas por dia e costuma seguir uma rotina: "Por volta das 21h, 22h, já estou na cama" (foto: Hugo Gonçalves/Esp. CB/D.A Press)
Os autores também destacam que existe uma variabilidade entre os gêneros quando se trata de perda de sono. As mulheres parecem experimentar muito menos deterioração no sono profundo não REM do que os homens. É assim com Anastasia Maria Rodrigues. A dona de casa de 65 anos conta que não tem dificuldades para dormir e acredita que isso aconteça porque segue a rotina diária e toma cuidados com os horários de descanso. “Durmo instantaneamente quando me deito na cama. Não importa o que aconteça. Levanto por volta das 6h e não sinto a menor vontade de dormir durante o dia. Já começo a realizar as minhas tarefas, preparo o café e sigo acordada, mas acredito que isso ocorre porque sempre vou dormir cedo, por volta das 21h, 22h já estou na cama”, relata. “Quando era mais nova, eu também dormia bem, só meus horários é que variavam um pouco.”

 

ESTUDOS

 

Cláudia Barata Ribeiro, neurologista e fisiatra do Hospital Prontonorte, em Brasília, ressalta que os dados quanto à diferenciação dos sexos presentes na pesquisa precisam ser aprofundados. “Eles são apenas estatístico, não sabemos por que isso ocorre. São necessárias mais observações, até porque, nessa fase da vida, os hormônios, que geralmente servem para diferenciar o que ocorre no homem e na mulher estão em número reduzido.”

Médico psiquiatra especialista em medicina do sono, Henrique Dumay acredita que outro caminho a ser explorado pela pesquisa é a relação entre os hábitos de descanso dos idosos e as complicações neurodegenerativas. “Ainda não sabemos o que ocorre antes: as perdas cognitivas causam a falta de sono ou a falta de sono desencadeia essas perdas. É algo que precisa ser melhor esclarecido”, diz. “Seria interessante quantificar essa diminuição de sono em idosos com e sem deficit de memória, e tentar fazer essa relação porque podem surgir possíveis terapêuticas.”

Prevenção e diálogo

Hugo Gonçalves/Esp. CB/D.A Press
Às vezes, Maria das Dores, de 84 anos, recorre a remédios para dormir (foto: Hugo Gonçalves/Esp. CB/D.A Press)
Ainda não existem opções de tratamento para a dificuldade de chegar à etapa do sono chamada não REM, mas há medidas preventivas, como não ingerir substâncias estimulantes durante a noite, como o café, e manter um horário regular de descanso. Maria das Dores Follador, de 84 anos, tenta manter esses hábitos, mas sofre com as noites maldormidas. A dificuldade é tanta que ela precisa recorrer a medicamentos. “Mesmo quando não durmo de noite, fico acordada de dia. Já passei noites inteiras em claro, tentava e não conseguia dormir de jeito nenhum. Meu marido sofre com Alzheimer e me preocupo muito com ele. Por isso, demoro para conseguir dormir. Quando a dificuldade é maior, tomo remédios.”

Segundo a aposentada, ela conseguia descansar melhor na juventude. “Sempre dormi sem interrupções, mas, com o passar do tempo, essa dificuldade começou a surgir. Hoje, é algo bastante complicado. Acredito que tenho mais dificuldades também porque fiz algumas cirurgias e, muitas vezes, fico incomodada com as dores que aparecem.”

Cláudia Barata Ribeiro, neurologista e fisiatra do Hospital Prontonorte, alerta para os cuidados quanto à ingestão de medicamentos. “Os autores do estudo falam que remédios para dormir podem não trazer o efeito desejado. E já sabemos disso, que os benzodiazepínicos causam esse problema e não recuperam o sono. Por isso, o ideal seria um medicamento que recuperasse essa fase perdida.”

Além de mais investigações científicas, a equipe norte-americana defende que o assunto precisa se tornar um tema frequente entre médicos e pacientes antes mesmo de se chegar à terceira idade.

PALAVRA DE ESPECIALISTA:
Qualidade desconhecida
Tatiana Cristina Peron, geriatra do Hospital Santa Lúcia e membro da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia


“Realizei uma pesquisa durante meu mestrado em que perguntei a idosos se eles dormiam mal ou bem. Em seguida, analisei o sono deles por meio da polissonografia, exame em que se avaliam todas as fases do sono minuciosamente. O resultado mostrou o contrário do que eles responderam. Isso quer dizer que eles não sabem definir a qualidade do sono. Às vezes, a pessoa ronca e não sabe. Por isso, seria interessante termos um meio de analisar o sono de forma mais barata, a polissonografia é bastante cara. Poderíamos, assim, direcionar melhor os tratamentos médicos. Formas de auxílio podem surgir quando conhecemos melhor o sono de cada um. Sabemos que muitos pacientes com demência, por exemplo, pioram por causa da apneia. Nesses casos, uma opção é o uso do CPAP, uma máscara usada enquanto dormem.”


EM ETAPAS


O ciclo fechado do sono dura de 90 a 110 minutos. As pessoas costumam atravessar de forma cíclica as diferentes etapas cinco a seis vezes em uma noite

Estágio 1 - É a transição entre o estágio de vigília e o sono. A melatonina é liberada, fazendo com que o indivíduo adormeça, mas ainda de forma leve, podendo acordar com facilidade. Há um aumento do relaxamento muscular. Representa de 2% a 5% do total do sono.

Estágio 2 -
Ocorre a sincronização da atividade elétrica cerebral, que fica mais lenta. O movimento dos olhos para e diminuem os ritmos cardíaco e respiratório, assim como a temperatura do corpo. Os músculos ficam ainda mais relaxados. Engloba de 45% a 50% do sono.

Estágio 3 -
É um início da fase não REM, a primeira fase do sono profundo. Com o estágio 4, representa o período de conservação e recuperação da energia física. O tônus muscular diminui progressivamente, quase atingindo o relaxamento total. Compreende 3% a 8% do sono.

Estágio 4 -
É a segunda fase do sono profundo. Ocorre pico de liberação da leptina, hormônio ligado a funções como resposta imune a inflamações. O cortisol, cuja baixa provoca problemas como depressão e dificuldade de aprendizagem, começa a ser liberado. Representa de 10% a 15% do sono.

Estágio 5 -
Chamada REM, é a etapa em que o cérebro processa a memória, as habilidades cognitivas e repõe energias. O movimento do globo ocular é intenso, por isso o nome rapid eye movement (REM, movimento rápido dos olhos, em português). Nesse período, que abrange de 20% a 25% do sono, ocorrem os sonhos.