Dois dias antes do aniversário da mãe, em 17 de agosto de 2013, Alice veio ao mundo pesando 900 gramas e 31 centímetros: “do tamanho de uma régua”, diz Mariana.
Mariana descreve esse capítulo de sua história como o momento de maior angústia da vida. “Não sabia o que podia ocorrer na hora seguinte. A condição de um bebê prematuro é de muita vulnerabilidade. No tempo que Alice ficou no hospital, podia visitá-la três vezes ao dia. Eu me despedia pela manhã com ela estável, mas não sabia qual seria sua condição à tarde. O tempo todo você se reprograma e se refaz, é muito desgastante do ponto de vista emocional. Para você ter uma ideia, não me lembro de quase nada que ocorreu fora da UTI, no tempo em que ela ficou internada. É como se eu tivesse tido um branco do que aconteceu no Brasil, no mundo, com meus amigos. Só me lembro do sofrimento imenso que era deixá-la no hospital e ir para casa. É desumano. Horrível”, diz.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 41.095 bebês nascem diariamente antes de completar as 37 semanas de gestação.
A vinda de Alice foi planejada, mas a gestação de Mariana era considerada de risco em razão do diagnóstico de trombofilia.
O vínculo entre mãe e filha não foi construído de forma típica, com o aconchego do colo, o olho no olho da amamentação, o cheirinho de neném por toda a casa depois do banho. “Vi e vivi situações de mães desistirem, de pais que não deram conta”, cita. Mas Mariana e Alice encontraram seu caminho e foi pela voz que as duas se conheceram, reconheceram e iniciaram a relação de amor. “A primeira vez que pude pegá-la no colo foi um pouco antes de ela completar um mês de vida. Só que dois ou três dias depois, ela teve a parada cardiorrespiratória e esperei mais um mês e meio pela segunda vez. Ela só veio para os meus braços de fato com quase quatro meses”, lembra.
Mariana abriu, então, “uma gretinha na incubadora” e contava para a filha o que tinha feito no quarto dela, cantava, contava histórias, falava sobre o tempo, os sonhos. “A gente acaba fazendo vínculos por outras vias. Sustentei esse vínculo na voz e na narrativa, posso dizer isso com toda a segurança. Até hoje minha voz promove um estágio de união entre nós, algo que foi construído lá atrás. Era a única coisa que existia que nos podia deixar próximas e talvez isso explique essa minha necessidade de escrever”, reflete.
Quando Alice tinha pouco mais de um ano, em abril de 2014, a jornalista iniciou o blog ‘Diário da Mãe da Alice’ que se transformou em um ponto de encontro – que em muitas situações rompeu a barreira do ambiente virtual – para que famílias com crianças atípicas pudessem se apoiar, trocar informações e se ajudar. “Embora chame diário, o objetivo não é expor a rotina da Alice, mas falar de alguma coisa pela qual ela está passando e que repercute em mim. É essa a perspectiva e, por isso, outras mães foram se identificando. São poucos os espaços de compartilhamentos – reais ou virtuais – da maternidade atípica”, diz.
E são essas descobertas de uma mãe e as histórias capazes de mobilizar o que temos de melhor em nós que vão se transformar em livro de mesmo título. Para isso, o projeto está em financiamento coletivo e precisa atingir a meta necessária: R$ 38.250. Se tudo der certo, o lançamento ocorrerá em dezembro. O desejo da jornalista é fomentar o debate sobre as questões relacionadas à maternidade atípica e à valorização da diversidade. “Não se trata de um livro autoral e individual, são histórias de muitas pessoas que eu conheci. Fiz uma seleção de textos publicados ao longo da existência do blog e pretendo escrever outros dois. No próximo vou falar sobre maternidade atípica em diversos estados do Brasil e o terceiro abordar a tecnologia assistiva (recursos e serviços que são desenvolvidos para a facilitar a vida de pessoas com deficiência)”, planeja. Segundo ela, muitos dos detalhes de equipamentos para pessoas com alguma necessidade especial são desenvolvidos por pais, mães e pessoas próximas justamente pela convivência e entendimento do que aquele indivíduo precisa.
Escola para Alice em 2017
Dos quatro meses que Mariana tinha direito de licença-maternidade, todos foram no hospital, mas ela conseguiu outros dois meses para se dedicar à filha. “Ela teve alta com cinco meses e fiquei com ela em casa só um mês. Voltar ao trabalho foi muito difícil, ela foi pra casa usando oxigênio e tomando várias medicações controladas. Mas era necessário, a estrutura de cuidado é cara”, explica. Só que a mãe não se sentia mais produtiva como antes do nascimento da filha. “Eu vivia em sobressalto. Voltei em fevereiro. Em novembro fui desligada. Mas dei graças a Deus, peguei meu acerto e fiquei por conta dela. Vivi tardiamente esse período de ficar juntinho”, observa.
E desde então, Mariana se dedicou exclusivamente à maternidade. Motivada, no entanto, pela condição de estabilidade da filha, a jornalista regressou ao mercado de trabalho há dois meses. Ainda mais que o plano para 2017 é com Alice na escola. “Eu, Mariana, continuo existindo e preciso ter os meus espaços de realização. Nesse tempo todo a gente se fundiu muito para que nós duas pudéssemos dar conta de superar tudo o que passamos. Agora, posso olhar para mim, para as coisas que gosto de fazer. Sou uma outra mulher e devo muito à minha filha. Antes de ela nascer, eu pensava que apresentaria o mundo para ela, mas foi ela que me mostrou o mundo sob a ótica das miudezas. O sucesso dela é na contramão do mundo. O mundo comemora em trilhões e ela comemora nas mínimas conquistas como o piscar de olhos. O livro não é a minha história e a história da Alice, é uma mensagem dentro de um contexto maior de um mundo que não só tolere, mas valorize as diferenças. Foi isso que a minha filha trouxe para mim”, diz.
Com o ‘Diário da Mãe de Alice’, Mariana passou a ter contatos com outras famílias e entender outras experiências da parentalidade atípica. “Conheci um rapaz que mora no Rio e tem paralisia. Ele acabou de traduzir um documentário para o português e costuma dizer, quando questionado sobre o assunto, que não saberia dizer como seria a vida dele sem paralisia porque não seria a vida dele, seria outra vida”, conta.
FUTURO A comunicação entre mãe e filha nada se parece com o que predominantemente é retratado nas novelas, no cinema, na literatura e na publicidade. O entendimento se dá de maneira muito sutil, com muitos detalhes. “A Alice me obriga a me conectar com ela em uma outra dimensão. É num piscar de olhos, no balançar das pernas, em alguns sinais”, diz. A garotinha precisa de auxílio 24 horas. “À noite quando ela dorme, por exemplo, ela não muda de posição sozinha, ela faz um barulhinho para eu ir lá e virá-la”, cita.
Atualmente, as convulsões da garotinha estão controladas graças ao uso do canabidiol (composto medicinal da maconha). “A medicação não resolveu 100%. A solução se deu na combinação do CBD associado à dieta cetogênica (rica em gordura e sem carboidrato). Ela passa dias sem ter convulsões”, diz. Alice também tem visão subnormal e por isso não enxerga muito bem, mas o cognitivo é bem preservado. Hoje, Alice faz fisioterapia, fonoaudiologia, hidroterapia e musicoterapia. Mariana Rosa diz sentir medo quando pensa no desafio que é colocar a filha na escola. “Não estou segura, tenho medo de não achar um lugar, de não ter inclusão, de ela ficar encostada num canto. Mas é preciso transpor, experimentar e tentar. Sei que a inclusão é um assunto recente no mundo, faz parte o aprendizado e nós estamos dispostos a encarar esse desafio”, diz.
Wesllem Farias Bacelar, educador físico e pai de Alice, é o responsável por cuidar da alimentação da filha. É ele também quem cuida da importação do CBD. “Ele troca fralda. Dá banho. Ministra a medicação. Mede a febre. Canta música inventada para ninar. Dança abraçado. Cozinha. Lava a louça. Limpa o piso. Reveza os cuidados na madrugada. Acompanha as terapias. Fala o histórico de internação hospitalar de cor. Quer aprender sobre órteses, sobre posicionamento, sobre tecnologia assistiva”, relata Mariana Rosa em seu blog. Segundo ela, o companheiro já fez algumas adaptações nos carrinhos que Alice usa para que a menina tenha uma postura melhor. “Professor dedicado por profissão, na paternidade cede a vez à própria filha e assume a condição de aprendiz”, resume a esposa.
Em relação às expectativas sobre futuro da filha, Alice ensinou uma lição importante a Mariana e Wesllem, algo que muitas vezes impede que as famílias se atenham ao que de fato é importante: o presente, a infância em si – seja ela de uma criança típica ou atípica. “Não temos expectativas não é porque não acreditamos nela. Acreditamos demais no potencial da Alice. Só que as expectativas são limitadoras. O que temos é muita esperança de que ela possa se desenvolver lindamente dentro de suas capacidades. As expectativas que temos não são em relação à nossa filha, mas em relação ao Estado, à sociedade, às empresas. Expectativas e cobranças. Espero que governo, escolas, sociedade possam oportunizar tudo o que a minha filha precisa para ela se desenvolver”, afirma.
MAIS INFORMAÇÕES:
Blog ‘Diário da Mãe da Alice’
https://diariodamaedaalice.wordpress.com
Como ajudar no financiamento coletivo do livro: https://www.catarse.me/diariodamaedaalice.