Terapia com eletrochoque ainda é alvo de críticas de especialistas

Graças a estudos que apontam sua capacidade de amenizar sintomas de transtornos como a depressão, a eletroconvulsoterapia é defendida por muitos médicos. Hoje, a técnica é aplicada com o paciente anestesiado e sob efeito de relaxantes, mas é alvo de críticas

por Paloma Oliveto 21/10/2016 13:00
Valdo Virgo / CB / D.A Press
(foto: Valdo Virgo / CB / D.A Press)
“Senhor McMurphy, pode me acompanhar?” Os dois minutos que se seguem a essa frase se tornaram um dos maiores emblemas da luta antimanicomial. Randle Patrick McMurphy, personagem vivido por Jack Nicholson no filme Um estranho no ninho, está internado em uma clínica psiquiátrica. Sem seu consentimento e sem sequer saber o que está prestes a acontecer, ele leva uma descarga elétrica na cabeça. O plano fechado concentra-se no rosto avermelhado, retorcido de dor e de uma revolta muda.

Quarenta anos se passaram desde a estreia do filme, baseado em uma experiência real. O antigo choque elétrico não foi desabilitado. Contudo, não se assemelha àquela prática desumana, que chegou a ser usada como instrumento de tortura. O nome, aliás, é outro. Hoje, os médicos preferem falar em eletroconvulsoterapia (ECT), tanto para dissociá-la de um passado nada glorioso quanto porque não é a eletricidade que produz os efeitos esperados, mas a convulsão que ela desencadeia. Feito com o paciente anestesiado e sedado, o tratamento também utiliza voltagens mais baixas e controladas.

Embora não se saiba exatamente o mecanismo de ação da ECT (leia na página ao lado), um número cada vez maior de estudos tem evidenciado a eficácia da técnica, principalmente no tratamento de quadros depressivos. Uma busca na plataforma PubMed, maior banco de dados mundiais de produção científica, mostra que, desde 1956, nunca se publicou tanto sobre a eletroconvulsoterapia quanto no ano passado. Foram 370 artigos contendo esse termo. Em 2016, de janeiro a setembro, houve 291 trabalhos envolvendo a ECT.

O interesse dos pesquisadores concentra-se principalmente nos casos mais graves, quando há, inclusive, risco de suicídio. Um desses estudos, conduzido pelo Royal College of Psychiatrists, da Inglaterra, envolveu 1.969 pacientes, dos quais 51,7% eram considerados “severamente doentes” devido a diferentes condições psiquiátricas, como depressão, bipolaridade e esquizofrenia. No fim do tratamento, 74,4% relataram que haviam melhorado muitíssimo (33,1%) ou muito (41,3%). Por outro lado, 6,8% não viram alteração no quadro, e quase 2% sentiram piora.

Sem milagre

A eletroconvulsoterapia, porém, não é milagrosa nem pode ser considerada o elixir da saúde mental. “Ela não resolve tudo, mas é uma ferramenta que, quando bem utilizada, pode ser muito importante”, diz o psiquiatra e pesquisador Moacyr Alexandro Rosa, diretor do Instituto de Pesquisas Avançadas em Neuroestimulação, em São Paulo, e vice-presidente da Associação Brasileira de Estimulação Cerebral (Abecer). “A ECT está mais indicada para casos intensos ou quando o paciente não tolera os medicamentos”, esclarece. De acordo com o médico, a eficácia depende do quadro — em episódios agudos, pode chegar a 90%. Já nos refratários, fica em torno de 60%.

Também não há garantia de efeitos duradouros, como constatou um estudo do Departamento de Psiquiatria do Hospital Universitário St. Patrick, em Dublin, publicado na revista Neuropsychopharmacology. Ao fazer a revisão da literatura sobre a técnica, os autores observaram que quase 40% dos pacientes de depressão aguda sofrem relapso nos seis primeiros meses, e cerca 50% ao fim do primeiro ano, quando não há prescrição de medicamentos ao término do tratamento. O uso de antidepressivos e antipsicóticos reduz esse risco, observaram.

“Depois que a pessoa melhora, tem uma manutenção, para diminuir a chance de recaída e de recidiva”, explica a psiquiatra Raquel Carvalho Mergulhão, do Instituto Castro e Santos, de Brasília. “O que os estudos mostram é que, se interromper a ECT e não fizer tratamento nenhum, a chance de recair é considerável. Mas se fizer a ECT e mantiver a medicação, essa chance já diminui bastante. Então, no tratamento pós-ECT, a manutenção pode ser tanto com antidepressivo associado ao lítio quanto com a própria eletroconvulsoterapia”, afirma a médica.

Críticas
O risco de relapso é uma das críticas que a psicóloga Semiramis Vedovatto, representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP) no Conselho Nacional de Saúde (CNS) faz a esse tratamento, que considera invasivo, mesmo com os atenuantes da anestesia e da sedação. “Por mais que o procedimento esteja mais avançado, o CFP não vê com bons olhos a ECT. Os médicos prometem a melhora, mas é uma melhora de somente seis meses”, critica. “Ainda é um tratamento agressivo e invasivo; é um choque no seu corpo. Querem se livrar do sintoma, não querem tratar da causa. Temos de cuidar das pessoas, e não puni-las com eletroconvulsoterapia”, afirma.

A psicóloga destaca, ainda, a inacessibilidade do tratamento, que pode custar quase R$ 1 mil por sessão, sendo que o mínimo recomendado são seis sessões. A ECT não faz parte do rol de procedimentos custeados pelo Sistema Único de Saúde — há um pedido de inclusão na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), sobre o qual ainda não houve decisão. Segundo a Assessoria de Imprensa do Ministério da Saúde, o órgão aguarda informações adicionais a respeito da ECT para elaborar o parecer. Os planos de saúde também não cobrem o tratamento, embora decisões da Justiça em todo o país, incluindo no DF, venham obrigando seguradoras a custeá-lo.

“A ECT não resolve tudo, mas é uma ferramenta que, quando bem utilizada, pode ser muito importante. Ela está mais indicada para casos intensos ou quando o paciente não tolera os medicamentos” - Moacyr Alexandro Rosa, diretor do Instituto de Pesquisas Avançadas em Neuroestimulação