Duas décadas depois do girl power, como está o feminismo?

Vídeo que relembra o apelo pop das Spice Girls nos anos 1990 desencadeia debate sobre os avanços recentes do feminismo

por Gláucia Chaves 04/08/2016 09:00
AFP/Leon Neal
Spice Girls no encerramento dos Jogos Olímpicos em Londres, em 2012 (foto: AFP/Leon Neal)
Em um mercado popular de um país que parece ser a Índia, garotas dançam ao som do hit Wannabe, das Spice Girls. Entre um passo e outro da icônica coreografia, cartazes pedem pelo fim da violência contra as mulheres. Meninas muçulmanas em uma sala de aula dançam felizes, com véus na cabeça e lápis nas mãos, enquanto escrevem no quadro-negro o desejo por educação de qualidade. A descrição não é do clipe que entrou para a história da música pop há 20 anos, mas de uma campanha organizada pelas Organização das Nações Unidas (ONU) em parceria com a Change.org. O feminismo e o conceito de girl power, reforçado pela música da girlband, é um dos focos do movimento. A comemoração de duas décadas do sucesso das Spice Girls levantou a bola: como anda o girl power nos dias de hoje?

As campanhas do Change.org têm como objetivo abordar temas relacionados à discriminação de gênero, violência contra a mulher, representação feminina na política, entre outros. A sugestão do movimento é que os usuários postem uma imagem com cartazes em que dizem o que esperam do futuro do girl power e do feminismo com a hastag #WhatIReallyReallyWant ("o que eu realmente quero", em tradução livre). A ideia é levar as sugestões para líderes mundiais em setembro, no âmbito das Nações Unidas. Embora o girl power não tenha sido cunhado pelas spices Geri Halliwell, Emma Bunton, Melanie Brown, Victoria Beckham e Melanie Chisholm, é inegável que o quinteto deu visibilidade à causa.

Para Clara Daschund, feminista e produtora musical da gravadora norte-americana Sun Studio (conhecido por ser o selo em que Elvis Presley, Johnny Cash, Jerry Lee Lewis e Carl Perkins começaram suas carreiras), o termo Girl Power é importante por soar mais acessível que "feminismo". "Acho que atinge uma faixa etária em que as meninas e os meninos se deparam com muitas inseguranças e estão formando o caráter e a personalidade", opina. Segundo a produtora, a abordagem precoce do tema é positiva, pois traz à tona as implicações de pertencer ao sexo feminino. "Por meio da educação dada às criancas e pela cultura da nossa sociedade, tentam fazer com que as meninas acreditem que não são tão competentes quanto os meninos. (O girl power) representa, então, o conceito mais básico do feminismo", analisa.

Ester Barreto, pesquisadora no Virgo Game Studios, especializado na produção de games para aprendizagem e impacto social e colunista do site Rock Noize, concorda. Para ela, "a popularização do termo, bem como do significado dele, permite a difusão de discussões e conteúdo extremamente importantes para as causas e questões ligadas à equidade de gênero". Dos anos 1990 para cá, porém, o feminismo mudou. Aos 29 anos, Ester lembra bem da educação "de mocinha" que recebeu: professoras e parentes ensinavam "bons modos", que tipo de roupa usar, como disfarçar a menstruação etc. Hoje, protestos de garotas de 13 anos contra a proibição de shorts em sala de aula, como o que aconteceu em uma escola de Porto Alegre em fevereiro deste ano, enchem a especialista de orgulho. "Não só pela manifestação em si (que é um direito), mas, principalmente, pelos argumentos apresentados, pela consciência de que o corpo, a mente e as decisões são delas e devem ser respeitados sempre."

O vídeo

- Produzido por MJ Delaney para a campanha Project Everyone’s #WhatIReallyReallyWant.

- Participações da banda britânica M.O., da comediante Taylor Hatala, da cantora nigeriana Seyi Shay e da atriz de Bollywood Jacqueline Fernandez.

- Objetivo: chamar a atenção para a equidade de gênero e promover a discussão da causa feminina entre os líderes mundiais.

O fenômeno Wannabe

O hit das Spice Girls foi lançado em 8 de julho de 1996. Foi o primeiro single das cinco garotas e rapidamente se tornou uma das músicas mais tocadas da década. A música fez parte do álbum de estreia delas, Wannabe. A canção é sucesso até hoje: no serviço de músicas em streaming Spotify, por exemplo, já foi ouvida mais de 94 milhões de vezes. Mais de 2,6 milhões de assinantes do serviço são ouvintes assíduos das garotas, sendo que 63% deles são mulheres. À época, ninguém esperava que os versos fizessem tanto sucesso — afinal, foram compostos em 20 minutos, gravados em menos de uma hora e o videoclipe, feito em uma única tomada. A letra inspira a liberdade, o empoderamento e a independência das mulheres — em suma, o girl power. O álbum vendeu mais de 19 milhões de cópias.

O futuro do poder feminino

Redatora, DJ, pesquisadora, curadora musical e criadora do blog Música de Menina, no qual aborda a questão de gênero na música, Débora Cassolatto é feminista e estudiosa do mundo pop: desde 2015, dá aulas e palestras sobre Mulheres na História da Música. Para ela, o melhor da mensagem das Spice Girls é a subversão de valores, até então difundidos não só na cena pop, mas na sociedade em geral. Nos anos 1990, Débora ainda estava na escola e lembra da sexualização dos ídolos da música (em especial, das mulheres), das listas feitas pelos colegas para escolher a menina mais bonita da classe e das rixas entre "patricinhas", esportistas, garotas de salas diferentes e por aí vai. "De repente, me aparecem cinco mulheres, cada uma com seu estilo, completamente extravagantes, vestindo o que elas queriam, com o papo de ‘parou! Vamos ser amigas!’", relembra.

Columbia Pictures/Sony Pictures Entertainment/Buena Vista International/Divulgação
Spice Girls no auge da fama: muita coisa mudou de lá pra cá (foto: Columbia Pictures/Sony Pictures Entertainment/Buena Vista International/Divulgação )
O termo girl power, para Débora, trouxe uma dimensão de amizade, sororidade e empoderamento entre as mulheres. Dos anos 1990 para cá, a mentalidade feminina mudou: músicas que se refiram a elas como "vagabundas", por exemplo, não encontram mais tanta aceitação (apesar de, infelizmente, ainda existirem). "As mulheres estão incomodadas com isso e já fazem um link direto com o número absurdo de feminicídios", argumenta. A participação feminina em discussões on-line, a mobilização em forma de ONGs e hashtags e a organização de grupos para assistência jurídica são exemplos de ativismo contemporâneo. "São apenas algumas das iniciativas que começaram na internet em que garotas ajudam garotas a terem uma vida melhor, já que o machismo é enraizado."

E o que está por vir? Para a produtora musical Clara Daschund, está na hora de a população carente conhecer o girl power. "Uma possível evolução do feminismo, a meu ver, seria conseguir abranger os mais humildes, com a devida linguagem e os devidos meios", completa. Diálogo e respeito são, para a pesquisadora Ester Barreto, os caminhos possíveis do girl power. Débora Cassolatto afirma: "Acredito que devo usar este espaço para ressaltar ações e esforços de mulheres que passam dias, noites, feriados e fins de semana abrindo mão de seu tempo livre, de seus hobbies, da família e, muitas vezes, do amor, sendo estigmatizadas em empregos, questionadas o dia inteiro, carregando rótulos absurdos apenas por acreditarem em um mundo mais justo."