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Sofrimento do estigma antecipado assombra mulheres soropositivas

Estudo mostra que as brasileiras são as que mais temem os prejuízos sociais caso revelem a infecção pelo HIV. O medo faz com elas abandonem o tratamento, evitem relações amorosas e fiquem mais suscetíveis às drogas

Isabela de Oliveira
Quantas soropositivas você conhece? Embora a infecção pelo HIV não distingua gênero, a maioria das pessoas tem dificuldade de recordar rosto e nome de infectadas.
Não porque o diagnóstico seja raro: dos 93.260 casos registrados no Brasil entre 2007 e 2015, 33,5% são de mulheres, segundo o Ministério da Saúde. Com participação do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um consórcio de cientistas mostra que, entre as brasileiras, o peso do diagnóstico é grande. Mais do que tailandesas e zambianas, elas sofrem antecipadamente com o julgamento da sociedade e escondem sua condição.

O levantamento, detalhado na revista Plos One, integra a HPTN 063, pesquisa internacional que investiga comportamentos para projetar intervenções que diminuam condutas de risco entre soropositivos. No Brasil, agentes entrevistaram 99 mulheres heterossexuais — foram 100 na Tailândia e 100 no Zâmbia. As participantes tinham em média 38 anos e não eram trabalhadoras do sexo. A infectologista e epidemiologista Ruth Khalili Friedman, da Universidade da Califórnia (EUA) e da Fiocruz, supervisionou o trabalho.

As perguntas abordavam, por exemplo, com que intensidade as entrevistadas achavam que pessoas próximas condenavam mulheres com HIV. O estigma antecipado — medo das consequências da revelação do diagnóstico — preocupa 40,9% das participantes, sendo o sentimento mais intenso entre as brasileiras (62,2%), seguidas das tailandesas (38%) e das zambianas (23%).
É possível que a menor percepção das zambianas seja devido à natureza generalizada da epidemia de HIV no país africano.

Na amostra, o exagero com álcool e drogas — 22% das brasileiras, 12% das tailandesas e 3% das zambianas — e a menor adesão aos tratamentos — 21%, 4% e 11%, respectivamente — chamam a atenção para os dados nacionais. “O abuso de álcool, um dos mais frequentes, pode ser utilizado como fuga da realidade vivenciada, o que também interfere negativamente na adesão. Preconceito e não revelação do diagnóstico para a família ou no trabalho também fazem com que o paciente não tome os remédio”, diz Sílvia Furtado de Barros, psicóloga no Hospital Universitário de Brasília (HUB) e responsável pelo projeto Com-Vivência, que auxilia soropositivos e seus familiares.

Segundo os autores, as mulheres com HIV que antecipam o estigma prejudicam a vida amorosa. Assistente social da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Fabiana Borges dos Santos conta que muitas pacientes acompanhadas no Hospital Dia desistem de se relacionar. “As pessoas não têm obrigação de falar sobre sua soropositividade, apenas de usar preservativo para se proteger e também o parceiro. Mas elas sempre ficam com medo de conhecer alguém especial, revelar o diagnóstico e transmitir a doença de alguma forma. Algumas preferem ficar sozinhas, outras buscam parceiros que também tenham HIV em sites de relacionamento ou grupos de apoio”, diz.

Negação
Um dos possíveis motivos para a dificuldade de aceitação das brasileiras é que muitas acham que estão longe demais da infecção. “A doença é, até hoje, vista como algo que acontece só com pessoas muito promíscuas, homens gays ou usuários de drogas. Essa sensação de invulnerabilidade causa angústia e negação no momento do diagnóstico. Mulheres jovens também podem sofrer com a ideia de que não poderão mais ter filhos”, diz Vivian Iida Avelino da Silva, médica infectologista do Hospital Sírio-Libanês (SP). Das entrevistadas, 32% das zambianas, 17% das brasileiras e 2% das tailandesas querem ter filhos biológicos. Adriana Briglia, especialista em psicóloga da saúde, acrescenta que a mulher não entende bem seu lugar quando recebe o diagnóstico da Aids. “O homem sabe que conseguiu o vírus pela virilidade, sendo ele heterossexual ou gay.
Mas o que a mulher é? Se tem muitos parceiros, promíscua. A sexualidade dela é mais cobrada. Mas acontece, na maioria das vezes, justamente o contrário: por geralmente associar o sexo ao amor, ela abre mão do uso de preservativos quando tem um parceiro fixo”, analisa.

Vivian da Silva explica que a via sexual é a forma mais comum de infecção entre as mulheres. “Em uma relação vaginal sem preservativo, elas têm maior risco de contrair o vírus que o homem: os tecidos genitais são mais facilmente invadidos”, diz a infectologista. Das entrevistadas, as zambianas e as tailandesas tinham dois parceiros sexuais em média. As brasileiras, um. A maioria (72%) coabitava com o principal parceiro sexual, sendo que 88% das brasileiras revelaram a soropositividade para o companheiro, taxa inferior à das tailandesas (94%) e das zambianas (98%).

Machismo e tradições pesam
O machismo também é um fator de transmissão importante. Dos 23 itens do questionário, os relacionados à procriação e ao casamento foram preocupações unânimes das entrevistadas. Entre eles, afirmações como a mulher é obrigada a ser submissa ao marido e não deve exigir o uso de camisinha; e a ausência de filhos gera perda de status. “Apaixonada, submissa e dependente, como vai exigir o preservativo do próprio marido, que, às vezes, se envolve com outras mulheres fora de casa? E, quando ela começar um novo relacionamento, como vai exigir isso?”, observa Adriana Briglia, especialista em psicóloga da saúde.

Nos três países estudados, quase metade das mulheres (45,3%) relatou perceber o estigma da sociedade com relação ao HIV: 42,9% reconheceram que a comunidade percebia fortemente as normas de gênero, com 66% das zambianas endossando as regras, seguidas de tailandesas (38%) e das brasileiras (24%).
Em Brasília, mulheres que pretendem sair de casa, mas são economicamente dependentes do marido são orientadas a procurarem grupos como as Cidadãs Posithivas, formado por soropositivas que buscam maneiras de encorajar e fortalecer outras na mesma condição.

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Além da biomédica
“Os achados relativos à população brasileira, sem sombra de dúvidas, apontam, mais uma vez, para a necessidade urgente de que se promovam em relação às infecções sexualmente transmissíveis (IST) — de fato e não apenas como recomendações — intervenções não apenas centradas no tradicional modelo biomédico. É fato hoje inquestionável, e o estudo confirma isso, que há um conjunto de fatores psicossociais que são determinantes nas IST’s. Assim, insistir tão somente no tradicional modelo biomédico, ao que parece, resolve parte do problema, não a sua totalidade.  Mas algumas observações merecem ser feitas em relação ao estudo. A amostra parece reduzida; devendo, então, os resultados, serem analisados tão somente em relação a essa população pesquisada, isto é, não convêm que sejam generalizados de forma absoluta e irrestrita.”

Rovena Paranhos, coordenadora do curso de psicologia da Faculdade de Medicina de Petrópolis, no Rio de Janeiro

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