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Vício em álcool

Delírios, ataques de pânico, vômito: caminho para a sobriedade não é fácil, mas autocontrole é a recompensa

As crises de abstinência são uma aflição a mais para quem decide parar de beber. Os que perseveram, contudo, costumam ser recompensados com qualidade de vida e autocontrole inéditos

Cristine Gentil Renata Rusky
Parar de beber não é apenas uma decisão dificílima a ser tomada; é também uma prova de resistência - Foto: CB/D.A Press
Você pode delirar, ter alucinações, ataques de pânico, náuseas e vômitos. Você pode desenvolver transtornos alimentares, como a anorexia. Pode ter convulsões, alterações de humor, crises de ansiedade. Em casos extremos, a depender do comprometimento dos órgãos, você pode até morrer. Você também será privado de um prazer momentâneo, que, por vezes, é o único conhecido e reconhecido, e isso causa dores, inclusive físicas. Se você sofre de alcoolismo e tem plena consciência disso, já sabe: parar de beber não é apenas uma decisão dificílima a ser tomada; é também uma prova de resistência.

Todos os sintomas listados aí nesse primeiro parágrafo são apenas alguns dos diagnosticados durante o período de abstinência, que muitas vezes, em maior ou menor grau, se segue à escolha consciente de desintoxicar o corpo. Normalmente, esse momento chega depois de duros embates e traumas que se prolongam por anos a fio. O dependente de álcool adoece o corpo e o espírito; também arrasta consigo a própria família.
Por vezes, causa danos irreparáveis. Não é mensurável o tamanho desse sofrimento, apesar de haver estatísticas que permitem medir o tamanho do problema.

O Ministério da Saúde contabilizou, no ano passado, 60.901 internações hospitalares no Sistema Único de Saúde (SUS) por transtornos decorrentes do uso de álcool. A boa notícia é que está caindo, numa média de 5% ao ano. O governo credita essa redução à expansão da Rede de Atenção Psicossocial, sobretudo ao aumento da cobertura da atenção básica e aos atendimentos nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Mas, nos últimos 10 anos, a média anual de procedimentos ambulatoriais por problemas associados ao álcool foi de 906 mil. Não é pouca coisa.

Quem consegue vencer as intercorrências e ficar definitivamente longe do álcool sabe a diferença entre estar abstêmio e ser, finalmente, sóbrio. Entende que o vício é uma coisa, e a doença, outra. Que a bebida levava ao prazer, ainda que durasse pouco. Mas a falta dela pode levar à felicidade. O diretor vice-presidente do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), Odacir Klein, ex-ministro dos Transportes, é uma dessas pessoas. Há 12 anos, parou de beber. Ainda é pouco se comparado aos 20 anos, entre os 40 e os 60 anos, em que viveu regido pelo álcool. Começou a beber ainda adolescente, mas foi nessa fase da vida que a situação se agravou.
O que ocorreu nessas duas décadas foi tão devastador que hoje prefere manter no passado, uma forma de aliviar as dores, sobretudo da família.

Apesar disso, tornou-se um autodidata no tema. Conhece tudo sobre alcoolismo, escreveu um livro chamado Conversando com os netos, em que compartilha seu conhecimento. Uma forma de fazer com que a informação vença o preconceito. Aos 73 anos, Odacir Klein goza de boa saúde. Não tem sequelas físicas do período em que ficou sob efeito do álcool. Faz caminhadas diárias porque é bom para a saúde e não com o objetivo de reforçar a sobriedade. Não tem qualquer outro vício nem sente vontade de beber. Pode participar de eventos em que outros bebem e isso não lhe causa problema. “Não estou apenas abstêmio, mas absolutamente sóbrio, não é necessário fazer nenhum esforço para evitar recaídas”, garante.

Foi dispensado da terapia há alguns anos. Mas tem seus apoios.
“A religião me faz ter a certeza de que, como não posso recuperar os prejuízos que causei aos meus semelhantes quando bebia, preciso ser solidário e generoso em grande escala para, na contabilidade da minha vida, compensar os débitos daquele período.” Nesta reportagem, ele, outras pessoas que sofrem de alcoolismo e médicos nos ajudam a entender melhor a sobriedade, que é diferente do ato de parar de beber.

Amigos antigos se distanciaram, pois não concebem festa sem álcool - Antônio José Oliveira, 47 anos, segurança - Foto: Zuleika de Souza / CB / D.A Press
Hábitos, companhias e lugares
Antônio José Oliveira, 47 anos, segurança, começou a beber aos 22. Como a maioria, manteve-se um bebedor social por muito tempo até se tornar dependente. Sexta-feira, depois do expediente, ia ao bar com os amigos. Com o tempo, começou a beber no sábado também. Depois, domingo. O resultado era ressaca na segunda-feira, “rebatida” com mais bebida.

Dois relacionamentos acabaram por conta do álcool; cada um resultou em um filho, hoje em dia, maiores de idade. Foi um pouco depois dos 40 anos que a situação piorou. Acordava de madrugada para beber e, se não havia nada, ingeria até perfume. Há quatro anos, ele decidiu pôr fim a essa situação, em nome da companheira, Raquel, dos filhos do casal, de 7 e 12 anos, e dos dois mais velhos.

Ele já havia tentado antes, mas os tremores, a sensação de pânico, a irritabilidade com qualquer barulho — até com o da geladeira — faziam com que desistisse. Qualquer problema também era motivo para beber. O psiquiatra Joelson Rodrigues explica que vício se relaciona tanto com aspectos da personalidade quanto com características culturais. “Numa sociedade extremamente compulsiva, o sujeito que não tolera o sofrimento busca no prazer um modo de aplacar suas questões existenciais mais profundas. Hoje, podemos falar em compulsão de praticamente tudo que nos traz prazer: sexo, internet, compras, jogos etc.”, aponta.

Um dia, diante da impossibilidade de ficar em pé no ambiente de trabalho, um dos chefes de Antônio o chamou para conversar, ofereceu ajuda e lhe apresentou ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Álcool e Drogas. “Foi interessante descobrirmos que o alcoolismo era tratado realmente como doença, não como sem-vergonhice. Muita gente não sabe disso e sente vergonha até de procurar apoio”, comenta a esposa, Raquel.

A abstinência fazia com que sentisse dores musculares e também tirava o sono. Antônio se deitava, mas não dormia. No Caps, recebeu apoio psicológico e médico. Receitaram um remédio para insônia e lhe deram um atestado de 30 dias de afastamento do trabalho, que foi renovado por mais 30. O resto do tratamento foi feito em Minas Gerais, onde a família da mulher de Antônio vive. Lá, eles já tinham tudo acertado para interná-lo, mas não houve necessidade.

Depois de um mês sem beber, ele foi a uma festa de casamento. Não aguentou. O ambiente com tanta gente bebendo fez com que passasse mal e fosse embora mais cedo. “Eu não sei nem explicar o que era, um enjoo”, relembra. Posteriormente, Antônio conheceu a Pastoral da Sobriedade, onde encontra forças para se manter sóbrio. Para ele, seria impossível continuar no caminho em que está sem o apoio religioso e foi por isso que o AA não lhe agradou tanto. No grupo católico, fez novos amigos. “Nós viramos uma família. Falamos a mesma língua, temos o mesmo programa e damos suporte um ao outro.”

Os amigos antigos se distanciaram, pois não concebem festa sem álcool. De fato, Antônio José ficou mais caseiro. Agora, as melhores horas são aquelas na companhia dos filhos. “Antes, eu só me preocupava com a minha diversão, e ela se limitava a idas ao bar. Hoje, penso neles e levo ao cinema, ao shopping e acabo me divertindo também.” A vontade de beber nunca sumiu, mas tudo bem. “Se eu resistir os primeiros três segundos, depois fica fácil”, calcula. Por precaução, não entra bebida em casa. A esposa, que bebia socialmente, praticamente parou. A rotina da família mudou. Mudou para melhor.

As quatro atitudes
O histórico da relação com o álcool tornou Odacir Klein um estudioso do tema. Sempre que pode, ele compartilha o que aprendeu. Como ele próprio diz, “não se trata de nenhuma liga antialcoólica nem daqueles chatos que ficam policiando quem bebe”. A partir da experiência, ele delineou quatro atitudes possíveis em relação ao consumo de álcool.

1. Há os que rejeitam a bebida alcoólica. Seus organismos são antialcoólicos. Beber, mesmo em pequenas quantidades, causa-lhes desconforto físico. Diante disto, não bebem e não correm o risco de se tornarem dependentes de álcool.

2. Há aqueles que podem beber moderadamente. Não são compulsivos no uso da bebida. Têm controle. Como exemplo, cita quem tem o hábito de tomar um pouco de vinho no almoço. O consumo termina com a refeição, não vai além. No caso de Odacir, se bebesse um copinho, o organismo pediria mais, por compulsão.

3. Há ainda as pessoas que sentem profundo prazer com a ingestão de bebida alcoólica. Normalmente, têm insuficiência de endorfina (neurotransmissor com poder analgésico), e o agente externo (a bebida) traz a sensação de bem-estar. O organismo pede cada vez mais. Esses indivíduos começam tomando pequenas quantidades, mas seguidamente chegam à embriaguez. São beberrões em jantares, festas e outros eventos. Como, no entanto, não bebem todos os dias, seus organismos não se tornam dependentes do álcool. Já ouviu as pessoas dizerem que alguém não bebe todos os dias, mas toma um porre a cada fim de semana? É um sinal amarelo aceso. Se passarem a beber com habitualidade, instalarão em seus organismos alcaloides que neles permanecerão. A partir daí, serão dependentes.

4. No caso dos dependentes, os alcaloides instalados no organismo são hóspedes que não abandonam a hospedaria de nenhuma forma. Se forem alimentados, tomam conta. Se não forem, ainda assim não somem — hibernam. Odacir Klein conta que ficou sem beber por longos períodos. Quando achava que poderia tomar um “pouquinho”, o organismo pedia mais. “A recaída é terrível, pois parece que o hóspede que estava instalado no organismo sem seu alimento quer tirar o atrasado. Na recaída, há uma absoluta falta de controle. A pessoa torna-se alcoolista, ou seja, portador da doença do alcoolismo. A doença foi instalada no organismo pela ingestão da bebida alcoólica e é incurável. O alcoolista é doente. O alcoólatra é um viciado”, conta. Quem faz o diagnóstico para afirmar que o cidadão está doente e que não deve ingerir álcool? Para Odacir Klein, é o próprio usuário. Os outros sabem de sua dependência e sofrem, por solidariedade. O usuário, no entanto, tem que entender que o primeiro gole lhe rouba o controle e que depende exclusivamente dele dizer “parei”. Precisará de socorro médico para a desintoxicação. “O gesto de busca da abstinência para chegar à sobriedade é da própria pessoa. Quem conseguir isso trocará o prazer momentâneo pela felicidade. 

%u201CParei de beber muitas vezes, mas recaía, porque estava apenas abstêmio e não sóbrio. Sobriedade é uma sensação de bem-estar permanente, geradora de tranquilidade e paz. Abstinência é a não ingestão. Muitas vezes, fiquei sem beber por muito tempo, até mais de um ano, mas meu estado era apenas de abstinência, pois ficava contando quanto tempo fazia que estava sem ingerir bebida alcoólica. Era um sintoma de que estava desejando beber. Pensava que a não ingestão de bebida alcoólica por longo período havia resultado em desintoxicação do organismo e que poderia beber moderadamente. Voltava a beber e as recaídas eram horríveis. À época, não havia atingido a sobriedade; apenas praticado atos de abstinência. O abstêmio pode sentir falta de bebida alcoólica. O sóbrio, não. O abstêmio fica privado do prazer que a bebida lhe confere e não alcança a felicidade de quem corta com segurança o uso, passando a ser sóbrio. Sobriedade significa a não intoxicação, com qualidade de vida mais saudável e paz interior %u2014 pela ausência da ressaca moral e pela certeza de não estar concorrendo para a infelicidade dos familiares. Quando ficava apenas abstêmio, tinha sensação nostálgica. Agora, sóbrio, a única lembrança que tenho é do que causei de infelicidade, não só pessoal, mas para as pessoas que por mim têm afeto.%u201D - Foto: Arquivo Pessoal

É um prazer poder ajudar
Para a maioria dos que abusavam de qualquer droga e pararam, a sobriedade é mais do que não estar sob efeito de álcool ou de qualquer outra droga que afete os sentidos. É saber que aquela substância está vetada para sempre, não importa a dose. É também recuperar o controle sobre as próprias vontades e encontrar o prazer em outras coisas.

A abstinência completa é um caminho mais seguro, mas não o único possível - Foto: Kleber Lima / CB / D.A Press“A abstinência completa é um caminho mais seguro, mas não o único possível”, defende o psiquiatra Joelson Rodrigues, doutor em psicologia e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Dizer ‘nunca mais’ é negar a possibilidade de nos autonomizarmos e fazermos as nossas próprias escolhas. Mas, para isso, se faz necessário um acompanhamento profissional, psicológico e psiquiátrico”, complementa.

A satisfação é uma questão biológica. Cada droga tem um efeito diferente no cérebro, mas o mecanismo do vício é muito parecido. “Todas elas dão prazer. Tem um centro do prazer no cérebro que é alterado por todas as drogas que produzem dependência. Elas o corrompem e empobrecem o repertório de obtenção de prazer”, analisa Ronaldo Laranjeira, psiquiatra coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo.

É possível viver bem após conhecer o fundo do poço da dependência química, mas exige muita força de vontade e, em certos casos, ajuda de medicamentos. João Batista (nome fictício), 72 anos, conta que, na juventude, considerava-se um bebedor social. Bebia, por exemplo, quando se sentia deslocado em festas. Era muito tímido; sentia vergonha de dançar. Aos poucos, foi perdendo o controle da situação.

O que o ajudou foi a instituição Alcoólicos Anônimos (AA), para a qual ele trabalha desde que atingiu a sobriedade, há 26 anos. Depois de um ano no programa, começou a dar palestras. “Os primeiros dias de abstinência são difíceis, dá vontade de beber. Precisa de muito apoio: ter alguém para conversar quando o desejo fica forte”, recomenda. Preferiu deixar de beber sem ajuda de remédios.

João aprendeu algumas estratégias para inibir o desejo por álcool: manter a barriga cheia e comer doces foram algumas das que mais usou. Chegou a sentir tremores e ter febre. Ele relata que a compulsão foi enfraquecendo lentamente e se tornou um desejo controlável. Acabou parando de fumar também. “Um dia, no AA, me perguntei: ‘Salvei meu fígado, mas vou continuar envenenando meu pulmão?’.”

Com a sobriedade, ele também conquistou autoestima. “A gente procura o álcool para resolver problemas psicológicos. Às vezes, paramos de beber, mas aquela sensação psicológica ruim permanece, então, é mais fácil voltar para o vício”, explica. Hoje, se acha lindo, sabe que é bem-vindo nas festas para as quais é convidado, que não é inferior a ninguém, mas a bebida, sim, o torna menor. Diverte-se em festas, toma suco de uva, que é o que mais gosta, e vai embora de cabeça erguida.

Atualmente, ele garante não sentir vontade alguma de beber — muito por causa da quantidade de histórias tristes desencadeadas pelo álcool que já vivenciou e ouviu nas reuniões —, mas reconhece que há muitos que, mesmo depois de 10 anos, ainda lutam contra a ânsia pela substância. “É muito imprevisível. Há pessoas no AA que achamos que vão ceder e se mantêm firmes. Há outras que achamos que estão firmes e acabam bebendo”, conta. Não recrimina quem bebe. Entende que tem gente que consegue beber apenas um chope e parar. Sabe que não é o caso dele — um gole já acionaria o gatilho para a compulsão — e quer ajudar outros como ele. Dentro do AA, não se julga, apenas se ajuda.

DEPOIMENTO
“Hoje, eu posso olhar para uma garrafa de vinho e não sentir nada. Ninguém precisa me patrulhar em uma festa. Eu não preciso me esconder. A vida depois do álcool é normal e é muito melhor. Hoje, aos 73, eu tenho muito mais qualidade de vida do que tinha aos 35. O relacionamento com a família, a produtividade no trabalho, tudo muda radicalmente. Diante do momento bom ou ruim, aprendi a me controlar, a entender que tudo é passageiro e a aceitar o que não posso mudar. Parar de beber é só o primeiro estágio. O importante é alcançar a sobriedade, que é um estado de serenidade. O álcool deixa de ser uma bengala para resolver problema e aprendemos a reivindicar direitos sem brigar, a conversar em vez de gritar. O álcool potencializa os defeitos de caráter. Livrar-se deles ajuda a largar a compulsão pelo álcool.” - João

Só por hoje

Viver um dia de cada vez é lema de muitas instituições que apoiam dependentes químicos, como o AA e a Pastoral da Sobriedade, de iniciativa da Igreja Católica. Seja qual for o vício — álcool, nicotina ou drogas ilícitas —, o primeiro passo é interromper o uso por completo. Não existe diminuir aos poucos. Mas, psicologicamente, o melhor é ir com calma, pensando “só por hoje, eu não vou beber”, todos os dias.


O “só por hoje” de Augusto Silva (nome fictício) já dura 13 anos. O bombeiro de 40 anos decidiu parar com a bebida no dia em que acordou deitado ao lado do cachorro da família. Nessa época, era comum passar a noite na rua. Nunca se lembrava do que tinha acontecido. Mesmo depois de tanto tempo, ele conta que a vontade de beber persiste. Por isso, o lema é tão importante para ele. É uma vitória controlar o desejo, em vez de deixar se deixar controlar por ele.

Nos piores momentos, correr foi a melhor terapia. A atividade física o livrou da compulsão. Recusou inúmeros convites de amigos para festas e bares; afastou-se daqueles com quem mais bebia; deixou de ir aos lugares associados ao álcool. Na época, morava com os pais. Hoje, tem esposa e filho. A medida fez com que recuperasse o respeito da família e dos amigos. Ele sente que não os envergonha mais.

Augusto relaciona o início do alcoolismo com o as pressões sofridas no trabalho. “No Corpo de Bombeiros, a qualquer momento, alguém podia morrer, podia precisar da nossa ajuda, podíamos ser chamados. Sentia que a sociedade dependia muito da gente”, relembra. Quando estava de folga, acabava trocando o convívio com a família e com amigos pela bebida.

Em 2003, com 6 meses de abstinência, Augusto começou a trabalhar em um núcleo de apoio chamado Caminhando com Jesus. Em 2005, sob coordenação do bombeiro, o grupo se transformou na Pastoral da Sobriedade. Os atendimentos não se restringem a católicos. É, na verdade, uma via de mão dupla. “Os encontros também são um suporte para que eu me mantenha sóbrio”, pondera. As experiências das outras pessoas agregam pontos de vista. “São relatos muito fortes. Bem piores que os meus próprios. Sabe-se lá onde eu estaria se tivesse continuado naquela vida.”  ç

DEPOIMENTO
“Hoje, eu sou muito mais feliz. Consigo lembrar das coisas que fiz. Sei que o tempero da minha festa sou eu mesmo. Muita gente não conhece a verdadeira alegria. Eu não sou um carro, que precisa de álcool para me movimentar. Antes, eu não era pai. Hoje, eu sou e tenho certeza que meu filho vai me ver da melhor forma. E, se, um dia, ele aprender a beber, vou ter certeza que não fui eu que ensinei. Hoje, eu me divirto com a minha família fazendo várias coisas e ainda corro, pedalo, jogo futebol.” - Augusto

ENTREVISTA
Elton Yoji Kanomata, psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein

"Quando tanto os sintomas físicos como mentais se encontram remitidos, pode-se falar em sobriedade" - Foto: Hospital Israelita Albert Einstein / Divulgação
Como é normalmente o despertar de um dependente de álcool? Em que momento ele ganha consciência de que é um doente e precisa se tratar?
É, geralmente, na fase da adolescência que a pessoa tem seu primeiro contato com o álcool, inclusive seu primeiro episódio de embriaguez. Essas pessoas passam a apresentar problemas relacionados ao álcool já quando adultas jovens e não demoram muito para evoluir para o padrão de dependência. A maior quantidade de dependentes tem entre 18 e 24 anos. Entretanto, a procura por ajuda especializada pode demorar anos, quando já se encontram instalados prejuízos significativos em suas vidas. Comumente, após os 30 anos.

Como essa pessoa chega ao consultório? Sofre de dores físicas? Tem alucinações? O que relatam normalmente?
A primeira procura do dependente por ajuda médica costuma ocorrer entre a quarta e quinta década de vida, decorrente de impactos negativos causados pelo álcool. Apesar desses prejuízos, essas pessoas ainda se encontram relativamente bem, porém já sendo observadas algumas alterações clínicas e presença de outras patologias mentais frequentemente associadas, como depressão e transtornos de ansiedade. Geralmente, as pessoas trazem preocupações com o fígado; queixam-se de problemas familiares e conjugais. Raramente é observada a presença de alucinações, e, quando presentes, o alerta é para patologias clínicas que as justifiquem.

Quando podemos dizer que a pessoa passa da abstinência para a sobriedade?
No período de abstinência, podem estar presentes a vontade/desejo de beber e até sintomas físicos. Quando tanto os sintomas físicos como mentais se encontram remitidos, pode-se falar em sobriedade.

Culpa e vergonha são os sentimentos mais comuns?
Sim, são sentimentos comuns observados em dependentes que já percebem os malefícios desse hábito, principalmente ao encontrarem a sua estrutura familiar e social abaladas, ou quando já apresentam repercussões clínicas significativas. O sentimento de culpa é tão comum que está presente em questionários de rastreio para uso nocivo de álcool.

As famílias acompanham até esse momento ou, normalmente, os alcoólatras estão muito sós?
Ambas as situações são encontradas. Muitas vezes, são as famílias que buscam e incentivam o primeiro contato com algum profissional da saúde. Entretanto, conforme o crescente grau de abalo da estrutura familiar, essa importante fonte de ajuda pode se encontrar escassa ou ausente.

O sóbrio encontra paz ou segue por longo tempo em sofrimento?
A pessoa sóbria consegue resgatar quase a totalidade de sua qualidade de vida, porém, esforços no sentido de se policiar e evitar recaídas ficam presentes.

Há diferenças na forma de enfrentar esse processo? Por exemplo, jovens reagem melhor que idosos? Mulheres melhor que homens? Ou não há um padrão?
Sim, de fato podem ser observadas diferenças na forma como as pessoas enfrentam a difícil jornada em alcançar a abstinência. Os jovens tendem a apresentar menores impactos negativos pelo alcoolismo, o que implica em uma maior adesão ao tratamento. Entre gêneros, as mulheres tendem a retardar ou procurar menos ajuda — por vergonha e estigma social.

É possível reconstruir laços familiares, conjugais, afetivos ou, às vezes, eles são totalmente desfeitos?
Geralmente, é possível resgatar esses laços, tanto com o sucesso em alcançar a abstinência como ao longo do tratamento, se trabalhadas adequadamente as questões interpessoais.

Que tipo de tratamento medicamentoso normalmente se usa? Por quanto tempo, em média?
Existem medicamentos específicos para o tratamento da dependência por álcool. No Brasil, estão disponíveis a Naltrexona, o Dissulfiram e o Topiramato. Entretanto, ressalta-se que cabe ao médico decidir pela melhor terapêutica, que pode não incluir esses remédios. A escolha dependerá de uma avaliação minuciosa do indivíduo.

É comum o dependente de álcool (com alguma predisposição) desenvolver problemas mentais, como depressão e pânico?
Sim. Comumente, a dependência de álcool é acompanhada de outras patologias mentais que podem se instalar antes ou depois da história de uso do álcool. Os transtornos mais comuns incluem os de humor, como a depressão (30 a 50%), transtorno afetivo bipolar (cerca de 6,5%) e transtornos de ansiedade (28%). Aproximadamente 33% dos adultos com TDAH apresentam antecedentes de abuso ou dependência de álcool.
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