"Mostrar que aprender é bom": Rosely Sayão fala do desafio de educar crianças e adolescentes

Para especialista, o papel dos pais vai além do acompanhamento do dever de casa

por Gustavo Perucci 20/06/2016 08:00
Arquivo Pessoal
Para Rosely Sayão, instigar o conhecimento do filho, proporcionando experiências diferentes, vivências culturais e artísticas e discussões sobre assuntos atuais com a criança é a melhor maneira de estimular o interesse pelo aprendizado (foto: Arquivo Pessoal )
Precisamos repensar nosso modelo educacional. Essa é uma das grandes preocupações da psicóloga e consultora em educação Rosely Sayão, referência no assunto no Brasil e autora de vários livros, entre eles Como educar meu filho?: princípios e desafios da educação de crianças e de adolescentes hoje e Educação sem blá-blá-blá: como preparar seus filhos e alunos para o convívio familiar, a escola e a vida. Para a especialista, o papel dos pais e mães vai além do acompanhamento do dever de casa e reuniões nas escolas. Instigar o conhecimento do filho, proporcionando experiências diferentes, vivências culturais e artísticas e discussões sobre assuntos atuais com a criança é a melhor maneira de estimular o interesse pelo aprendizado. Cobranças em demasia, expectativas de excelente rendimento e impaciência na hora de orientar pressionam os jovens estudantes que, assim, podem desenvolver uma visão negativa do conhecimento. A psicóloga também questiona o formato tradicional das instituições de ensino atualmente no Brasil, ressaltando experiências inovadoras que apresentam ótimos resultados no envolvimento dos alunos.

Qual a sua opinião sobre a participação dos pais na vida escolar do filho?
Acho que os pais interferem em demasia e isso não é bom para o estudante. Quando eles interferem, sempre o fazem na expectativa de que o filho vá bem, acerte tudo. E não é assim que estudamos. Aprendemos errando, experimentando... A lição de casa, por exemplo, precisa ter um planejamento escolar para saber qual a função dela. Em geral, a escola diz que é para o aluno aprender a conquistar autonomia nos estudos, mas as crianças não o fazem sem os pais. E quando o aluno não faz a lição, o que a escola faz é avisar os pais. E acaba não surtindo efeito. Quando faz, normalmente é negativo para o estudante, independentemente da idade.

Uma postura equivocada na hora de orientar ou ajudar o filho nos estudos pode gerar algum problema na relação dessa criança com os estudos?
Pode levar a uma visão negativa do conhecimento, do ato de estudar. E, em geral, é isso mesmo que acontece. Os pais até tentam começar o trabalho com o filho com paciência, mas, logo, ela acaba. Eles não são professores. Podem até ser profissionais da educação, mas não dos filhos deles. Não vejo como produtivo muita interferência. Tem uma autora italiana que diz que a escola é a primeira batalha que a criança deve enfrentar sozinha, porque aí ela vai aprender muito mais que o conhecimento sistematizado. Vai aprender a se responsabilizar, se comprometer. Vejo, hoje, uma cobrança demasiada na criança, principalmente na lição de casa. Mas essa é a pressão da escola, da sociedade, e as famílias acabam cedendo.

Ao procurar uma instituição de ensino para o filho, muitas famílias fazem uma projeção do futuro dessas crianças, já pensando no vestibular, no mercado de trabalho...
Não deveria ser assim. Hoje, os pais ainda vão matricular o filho preocupados com as taxas de aprovação da escola no vestibular. A escola básica deveria funcionar para formar o aluno como estudante. Mas, hoje, as escolas são muito conteudistas. E aí ocorre esse fenômeno de um monte de lição de casa, de aula particular, das crianças superatarefadas. O conhecimento não leva, necessariamente, a um sucesso profissional. Leva a uma vida melhor, porque, com ele, entendemos melhor a vida.

E qual a importância do estímulo à educação?
Vejo essa importância, mas de um jeito totalmente desgrudado da vida escolar do filho. É valorizar o conhecimento, a leitura. Mas não aquilo que a escola manda ler, o conteúdo que a escola está passando. Mas, por exemplo, um assunto que está na mídia. Conversar com o filho sobre esse assunto, ver o que ele pensa, assinalar para ele que existem pensamentos que são só senso comum, principalmente pela falta de conhecimento. Mostrar que, com a educação, é possível pensar diferente. Cultivar no filho a curiosidade, a vontade de saber, de aprender, a busca pelo aprendizado constante. Buscar também aceitar a ignorância. Porque só aprende quem admite a ignorância, o que, hoje, ninguém admite. Todo mundo sabe tudo. As crianças, inclusive.

Como despertar esse interesse pelo conhecimento na criança?
A primeira coisa que diria é que, para aprender a gostar do conhecimento, a cobrança não pode ser demasiada. Porque estressa e cria uma relação negativa da criança com o conhecimento. É preciso cobrar de uma forma mais tranquila. Falar que se a criança já aprendeu algo, é hora de aprender uma coisa nova. O papel dos pais é mostrar que aprender é bom. O que é chato é a escola, não o aprendizado. As crianças e jovens têm essa postura de enfrentar os desafios, que acho maravilhosa, quando elas jogam, por exemplo, videogames ou jogos de computador. Elas querem passar para a fase seguinte do jogo e, para isso, passam por grandes dificuldades. Quando não conseguem, consultam sites, pessoas, vídeos. E isso nada mais é que busca por conhecimento. Eles não querem parar porque a próxima fase é mais difícil. Ao contrário. Querem cada vez mais desafios. A nossa vida escolar atua de modo oposto a esse: 'Olha, você tem que aprender isso. Aprendeu, está ótimo'. Não instiga, não desafia o estudante. Se nossas escolas não fazem isso – e já poderiam fazer, pois temos experiências e conhecimentos acumulados para isso –, é porque têm receio de que os pais estranhem. E os próprios pais e mães têm receio de sair do que é conhecido. O melhor é uma cobrança como se fosse dos videogames, de sempre passar para a próxima fase, de sempre enfrentar um novo desafio.

É um problema do nosso modelo educacional?
Hoje, no Brasil (mas insisto: não é só aqui. É uma linha muito presente nos Estados Unidos, por exemplo. Alguns países da Europa já a abandonaram), fazemos a seguinte relação: quanto mais conteúdo, maior o conhecimento. Quando, na verdade, quanto mais conteúdo, mas superficial é o conhecimento. Então, se invertêssemos essa equação, esse raciocínio, essa lógica, pensando que se aprofundássemos em um, dois ou três conteúdos o conhecimento seria mais sólido, mais sistemático, e aí o estudante aprenderia a fazer isso com outros conteúdos, pronto. Estaríamos livre dessa pressão enlouquecedora de tanta lição, tanta aula, tanto trabalho...

E ainda sobrecarregando a criança com atividades extraescolares...

E sempre pensando no tal do futuro. Ah, se eu soubesse como resolver meu futuro, saberia como viver meu presente... É como se fosse uma pressão da expectativa dos próprios pais. E as escolas compactuam com isso.

Então, é preciso repensar o modelo de ensino no país?
Isso. Nós já temos aqui no Brasil escolas que já repensaram seus modelos e estão com uma prática bem diferente. O próprio Ministério da Educação (MEC) listou as escolas inovadoras no país. E é bem interessante. Os pais acham que são poucas, mas existem muitas, espalhadas por todo o país. No sertão do Ceará tem uma escola que as classes não são divididas por série. Em São Paulo, uma escola em uma favela tem uma metodologia totalmente diferente do comum. E essas iniciativas só produziram resultados melhores, participação e interesse dos alunos. Uma série de curtas-metragens muito interessante, dirigida pelo Luiz Bolognesi com a Laís Bodanzky, chamada Educação.doc, que está disponível na internet, pesquisou pelo Brasil as escolas públicas que funcionam com um modelo diferente e os efeitos disso. Vale a pensa assistir. É de ficar maravilhado.

Não é uma questão de ficar somente em cima do rendimento escolar. É uma questão de convivência mesmo, de relacionamento com o filho?

De estímulo cultural, intelectual, artístico. Hoje, valorizamos somente as disciplinas que estão no currículo da escola básica e esquecemos que se tivéssemos uma base intelectual e artística esse mesmo conteúdo seria entendido mais facilmente. A questão é a criança conseguir se desenvolver sozinha. Pense em algumas gerações atrás, uma criança de pais analfabetos. O destino dela já está traçado? Ela não vai bem na escola? Não vai ler nem escrever? E os pais da classe média alta, que trabalham feito loucos e não têm paciência nem tempo de acompanhar os filhos? Esse filho também já está destinado a ir mal na escola? Não é democrática essa concepção. E nem é uma verdade. Temos que garantir o aprendizado para todos as crianças. Essa deveria ser nossa linha.

Mas é um desafio garantir o aprendizado para todos...
A nossa grande riqueza hoje é poder fazer múltiplos modelos escolares que vão combinar mais com determinadas comunidades. Não precisamos ter um modelo que deu certo e todo mundo fazer igual. É um desafio regional e global ao mesmo tempo. Não perder nossas raízes, ser fiel ao estilo daquela comunidade e lembrar, ao mesmo tempo, que, hoje, o cidadão é global. Devemos levar o conhecimento a esse alcance. Turmas menores podem funcionar? Podem. Mas temos exemplos de escolas que nem turmas tem ou que as turmas têm mais de 100 alunos e funcionam muito bem.

Falta pensarmos a o conceito de educação?

Exato. E a lista do MEC também. As escolas argumentam que não podem mudar por causa das exigências do MEC. Não temos restrições desse tipo, além do próprio MEC ter reconhecido essas novas experiências. As iniciativas inovadoras têm pouco tempo porque tem pouco tempo que as pessoas começaram a ter coragem de fazer isso. Mas esses novos modelos existem há 30, 40 anos fora do Brasil. É falta de coragem e de estímulo também. A imprensa, de modo geral, não dá espaço para essas experiências diferentes. Destacam as notas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o resultado do vestibular, os primeiros colocados, de que escola são... E isso tem uma repercussão social. Funciona como uma pressão nas famílias.

Boa parte dessa mudança viria pelo engajamento dos pais, então?

Sim. Mas não esse engajamento direto de 'vamos, meu filho, fazer a lição'. É um engajamento na concepção de educação, batalhando para que as escolas de um modo geral sejam melhores, e não tão mesquinhas como são hoje, seguindo somente o mínimo que o MEC exige. Que elas tenham uma ideia de formação mais global. Um documentário chamado Tarja branca, da Maria Farinha Filmes, tem um depoimento de uma pedagoga maravilhosa, que diz o seguinte: as escolas preparam os alunos para o vestibular. Mas ninguém nasceu para o vestibular. Nascemos para ser gente. E o conhecimento ajuda a gente a ser gente...

Essa história de cursar universidade, fazer pós-graduações, MBAs, é sempre ligado a uma expectativa de sucesso, não a uma realização do ser...
Exatamente. E além de ser associada ao sucesso, é o sucesso pessoal. Pergunte para alguém que escolhe uma profissão a razão dessa escolha. Ou é o que a pessoa pode, em qual curso passou, a demanda de mercado... Pouquíssimos buscam uma profissão, por exemplo, para melhorar o país. Falta o senso do coletivo.

Inovação
O Ministério da Educação (MEC) reconheceu 178 instituições de ensino públicas e privadas e organizações não governamentais como exemplos de inovação e criatividade na educação básica. A pesquisa nasceu do interesse em identificar e conhecer iniciativas inovadoras para buscar novos modelos que possam contribuir para a melhoria da qualidade da educação brasileira. Exemplos em cidades às zonas rurais, com, inclusive, escolas indígenas, mostraram o poder da inovação, trazendo soluções que, cotidianamente, apontam novos caminhos para garantir a qualidade da educação. O Mapa da Inovação e Criatividade na Educação Básica (criatividade.mec.gov.br) mostra, portanto, que é possível – e que já está acontecendo – a transformação das escolas e dos ambientes educativos em todas as regiões do país, em diferentes contextos socioeconômicos e com os mais diversos públicos.