Um dedinho de prosa

por Zulmira Furbino 22/12/2015 12:06

O céu estava azul na manhã em que o WhatsApp não acordou. A diferença é que o celular não fez o pipipi tradicional, provando, para meu desespero, que família que é família não acorda cedo, madruga.
Tudo rolou tranquilo.

Fiz uma crepioca recheada com queijo canastra, acompanhada de chá verde, sem que ninguém interrompesse minha tarefa. E me sento agora para escrever esta crônica, certa de que meus pensamentos não vão se dispersar em meio à avalanche de vídeos e memes nossos de cada dia.


Minha amiga, que me daria carona para o trabalho, passou lá em casa na hora marcada e, para que nem ela nem eu esperássemos muito tempo na rua, bastou uma troca de telefonemas sem custo (nossa operadora de telefonia é a mesma).


Até agora, não identifiquei qualquer sinal de síndrome de abstinência do WhatsApp.
Meus batimentos cardíacos estão normais – talvez mais calmos –, minha concentração um pouco mais aguçada, meu bom humor matinal, que meus filhos consideram irritante, com a corda toda.


No dia em que o WhatsApp parou, por coincidência ou obra do destino, recebi uma cartinha e um cartão de Natal, caprichosamente escritos e bem protegidos dentro de um envelope verde-escuro, com carimbo de Caxambu.
A cartinha natalina é um mimo de fim de ano que venho recebendo desde que comecei a escrever esta coluna, em 2013. E a cada ano é, ao mesmo tempo, uma surpresa e uma alegria. Nesse mundo imerso na velocidade da comunicação via cabo, onde navegam as redes sociais, sempre temo que minha queridíssima leitora Dilza Andrade, que também é minha amiga no Facebook, ceda à tentação e passe a me enviar votos de feliz Natal via mensagem inbox.


Para minha sorte, ela permanece firme e delicada na escrita a mão. E me conta que continua fazendo coleção das minhas crônicas. “O dia em que você publicar um livro com elas, eu as elimino, passando para quem não as leu”, escreve.
E prossegue comentando os textos de que mais gostou, como aquele que fala dos apelidos e o outro no qual conto que incluí o sobrenome Salvador na minha assinatura como um carinho para honrar minha mãe, onde quer que se encontre a energia dela – dispersa pelo universo ou num cantinho do Céu.


Sua carta, escrita num papel branco e fino com listras azuis, como costumam ser as folhas dos blocos de carta, me faz perceber que, apesar do avanço tecnológico, afortunados como eu continuam a receber delicadas mensagens à moda antiga, enviadas em envelopes carimbados de afeto.


Em suas bem traçadas linhas, ela me revela várias coincidências entre sua vida e a minha, como o fato de uma vez haver dançado com meu irmão João Paulo, que tinha o apelido de “Sabão” porque emplastava o cabelo para penteá-lo para trás e era metido a sabe-tudo (ainda é um pouco, certas coisas não mudam nunca, ainda bem).


“Nunca esqueci da música Carolina, de Chico Buarque, pois enquanto ela estava sendo tocada ele perguntou o meu nome e, aí, quando eu disse, falou que era como o da música.” Meu irmão acabou se casando com uma amiga dela, a Julinha, cunhada que tanto amo e admiro.


O que minha leitora não sabe é que há mais uma coisa em comum entre nós. Em minhas férias, em Portugal, meu namorado e eu ouvimos sem parar a música Carolina na voz de Carminho, a jovem fadista portuguesa que apareceu duas vezes no documentário Chico – artista brasileiro, onde interpreta Sabiá (Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1968) e Sobre todas as coisas (Edu Lobo e Chico, 1993), num lindíssimo dueto com Milton Nascimento.


Há tantas histórias em comum entre Dilza e eu que as coincidências já viraram tendência. Quando for a Caxambu, certamente baterei na porta da casa dela para tomar um cafezinho e gastar um dedo de prosa.


Nesse momento, vou brincar de voltar a viver num mundo onde as declarações de afeto eram feitas olho no olho e de abraços bem apertados. Até lá, Dilza, espero continuar recebendo suas cartas, que valem bem mais do que mil imagens no WhatsApp.