Matar ou morrer

por Zulmira Furbino 24/08/2015 15:16

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SXC.hu / Banco de Imagens
(foto: SXC.hu / Banco de Imagens)

Eulália acordou, fez café e tapioca, calçou o tênis, vestiu a roupa de ginástica e saiu de casa rumo à academia. Voltou hora e meia depois, exausta pelo esforço físico. Abriu a porta e seguiu para a cozinha, onde tomou iogurte (sem lactose) e lavou a louça.

Saiu direto para o chuveiro. Quando voltou à cozinha, reparou no corpo adolescente – aparentemente feminino – paralisado e colado ao chão, mas, em contradição, profundamente vivo e atento a tudo à sua volta.

Manteve silêncio para não assustá-lo. Pé ante pé, foi até o quarto de despejo onde pegou a arma certeira. Voltou à cozinha, ainda tomando cuidado para não fazer barulho. Ela (ou ele?) continuava lá, a tez morena contrastando com a alvura do porcelanato.

Devagar, Eulália levantou a mão, sentindo-se ao mesmo tempo atraída e enojada, a respiração retida. O braço suspenso no ar concentrava toda a sua força.

O que aconteceria se o corpo se movesse? Teria tempo para se defender? E se a coisa morena corresse para o outro canto da cozinha? E se atacasse Eulália? Seria justo matá-la justo por estar viva? Simplesmente por serem de naturezas distintas?

Pensava nisso de forma descontrolada (era impossível deter o fluxo mental). Voltou a respirar e encheu os pulmões de ar como se fossem balões capazes de deixar em suspenso o momento decisivo entre atacar e ser atacada, matar ou morrer (nem que fosse de medo).

O braço direito movera-se um pouco até ficar dobrado na frente do peito, o que lhe permitia segurar a arma com firmeza. Num átimo, os pensamentos desordenados milagrosamente se juntaram feito um quebra-cabeças montado na caixa.

Sem tirar o olho do inimigo, Eulália mirou, abaixou-se um pouco, desferiu o certeiro golpe de chinelo e plaft!, esmagou a jovem barata de tamanho médio que estampava o chão limpo.

Já havia feito coisas horríveis com – e por causa – das baratas, mas nunca chegara perto de sua amiga GH saída diretamente do livro A paixão segundo GH, de Clarice Lispector. Aquilo sim era uma coisa fora de propósito. GH, sem querer, matara um inseto dessa espécie, caindo numa profunda crise existencial que a levou a comer a gosma branca que saiu de dentro dele, igualando-a ao bicho.

Eulália, no entanto, era mais pragmática.

Uma vez acordou de madrugada e sentiu uma cosquinha gostosa na perna, intrigando-se, porque não havia ninguém além dela debaixo das cobertas. Levantou-se, acendeu a luz, sacudiu o virol e pulou para trás quando uma barata ancestral saiu correndo em direção à lateral da cama e foi se esconder ao pé da escrivaninha.

O grito que ecoou acordou a casa inteira até alguém aparecer e matar o inseto.

Noutro episódio, justo quando ganhou um sofá usado da irmã, baratas começaram a aparecer em seu apartamento. Depois de pedir à empregada para dar uma faxina em casa, retirando até os pregos do lugar (sem encontrar nada), desconfiou que o problema estava no móvel.

Devagar, virou o sofá de pernas para o ar e puxou uma quina do forro de pano, espiando lá dentro com cuidado. A verdade se descortinou. Estavam ali. Centenas, milhares delas.

Famílias inteiras, com direito a avós, pais, filhos, netos, bisnetos, tataranetos. Movendo-se e balançando as antenas para dentro e para fora como um limpador de para-brisas ao contrário – ou uma multidão de egípcios escalando pirâmides pelo avesso.

Eulália piscou os olhos. Era difícil acreditar naquela visão do inferno.

Raciocinou rápido, ao mesmo tempo em que fechava o forro outra vez e seguia para o quartinho, trazendo de lá um Detefon do tipo sanfona.

Voltou para a sala, reabriu o sofá, borrifou a lata inteira de veneno lá dentro e tornou a fechar o forro, esperando pacientemente que uma civilização inteira fosse dizimada.

No fim, limpou os vestígios do massacre, gozando de um indescritível – embora passageiro – sentimento de vitória sobre esses seres que, dizem, seriam os únicos sobreviventes do mundo em caso de uma guerra nuclear.

Ao vencedor, as baratas.