Fio da navalha

por Zulmira Furbino 29/06/2015 13:31

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Lelis
(foto: Lelis)
 

 

Benjamin é um menino encantador, desses que fazem os pais derreterem de orgulho. Com um ano, soletrava as letras. Seis meses depois, recitava o alfabeto. Antes de completar dois anos, reconhecia as formas geométricas e, pouco depois, lia livros inteiros. Aos três, recitou à perfeição, para um amigo dos pais que mencionara Shakespeare, versos do discurso de Oberon, em Noite dos reis, escrito pelo autor inglês.

Minha oportunidade de conhecer a história de Benj e sua mãe chegou quando aceitei um convite da editora de Cultura do jornal para escrever uma resenha sobre o livro O filho antirromântico, de Priscilla Gilman, lançado no Brasil pela Companhia das Letras.

Professora de literatura, Priscilla cultiva uma visão mais do que romântica da maternidade. A chegada do filho, no entanto, desconstrói esse sonho. Apesar das façanhas intelectuais, Benj tinha um comportamento arredio e dificuldades motoras e sociais. Era diferente do que os pais esperavam em todos os aspectos. Era o filho antirromântico.

A proposta para a resenha chegou num daqueles momentos em que você tem a impressão de que vai ser soterrada por uma avalanche. Trabalho em excesso, filho em casa com quatro cisos inflamados e 39 graus de febre, adoecimento de uma das pessoas que você mais ama.

Enfim, naquela hora em que o caldo do seu mundo parece estar realmente entornando.

Hesitei, mas topei.

Em geral, a maioria dos depoimentos sobre os desafios de criar e cuidar dos filhos soa como mais do mesmo – e na verdade é – porque a experiência de maternidade/paternidade e as descobertas, gostos e desgostos que dela advêm estão aí mais ou menos eternamente.

A pegadinha é perceber que, por muitos motivos, o exercício da maternidade – e da paternidade – raramente corresponde aos nossos devaneios. E esse é um golpe maravilhoso que, em maior ou menor medida, atinge todos os pais que se propõem a amar profundamente seus filhos.

A trilha de Priscilla e Benj é exemplar e especial nesse sentido. Ele está no fio da navalha que separa uma inteligência brilhante do altismo. Ela atravessa a sua própria corda suspensa entre os despenhadeiros que separam o impulso de proteção de uma intensa cruzada pela independência do filho.

Quem é pai ou mãe sabe: parece que o mundo vai acabar quando você nota que seu filho passa – ou tem – um problema. Lembro-me, e é difícil escrever sobre isso, quando João, meu primogênito, aos cinco anos, caiu de uma claraboia do playground de um prédio e de como desci as escadas correndo, engolindo degraus ao avesso, para encontrá-lo desacordado na garagem.

Do depois com hospitais, ambulâncias, exames, cirurgia, UTI. Da ambulância, onde percebi algo estranho (ele estava entrando em choque) e gritei: “Volta! Não vai embora!” e ele voltou e ficou. Da sensação apavorante de subir com meu filho o elevador antigo do hospital, que enguiçou no meio do caminho, sem saber se ele sobreviveria aos próximos 15 minutos.

E de, em meio a isso tudo, descobrir duas verdades contraditórias.

Os filhos dependem de você, do seu amor, da sua intuição e proteção – antes do acidente, por algum motivo, eu não queria ir para o local onde tudo ocorreu e, chegando lá, não queria que ele ficasse longe de mim – e, ao mesmo tempo, é imperativo que se libertem dessa corrente de amor.

João tinha 13 anos quando saiu de ônibus sozinho pela primeira vez, atravessando a cidade. Ia para a terapia. No bolso, levava um mapa que indicava o caminho para chegar ao consultório da terapeuta. Fiquei apavorada até que ele me telefonou avisando que estava tudo bem.

Benjamim também tinha 13 anos quando saiu sozinho pela primeira vez. Era meio-dia, a cidade estava um caos. Seu destino também era a terapia. Priscilla sentiu-se aterrorizada até ele ligar e avisar que havia chegado. Quando o telefone tocou e ela atendeu, Benj gritou:

– In-de-pen-dên-cia!

Todas as histórias são mais ou menos as mesmas, mais ou menos eternamente.