Saúde

Pesquisa liderada por brasileiro combate leishmaniose com saliva do mosquito transmissor da doença

Proteína presente no líquido ameniza pela metade as manifestações da doença

Isabela de Oliveira

Doença que atinge 1,3 milhão de pessoas a cada ano, matando cerca de 30 mil delas, a leishmaniose não tem vacina. Uma parceria entre pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos traz resultados que podem mudar esse cenário. Eles conseguiram diminuir as manifestações da enfermidade infecciosa em mais de 50% e ainda reduzir o tempo de recuperação com uma vacina criada a partir da proteína PdSP15, encontrada na saliva do mosquito transmissor da doença. Encabeçadas pelo pesquisador brasileiro Luiz Fabiano Oliveira, que trabalha nos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, as descobertas foram detalhadas na edição de hoje da revista Science Translational Medicine.


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Ao se falar em vacina, imagina-se que ela foi criada para atacar um vírus, explica o infectologista Werciley Junior, do Hospital Santa Lúcia, em Brasília. “No caso de protozoários, há um problema: eles são maiores que os vírus e invadem as células de defesa, no caso os macrófagos, que deveriam capturar e destruir esses micro-organismo, ‘comendo-os’”, detalha o médico não participante do estudo. No entanto, no caso de doenças como a leishmaniose, essas estruturas imunológicas acabam sendo atacadas antes pelos parasitas, que as invadem e as utilizam como casa para procriar até explodirem, espalhando a doença pelo corpo.

“As tentativas de vacina que existem miram esse ciclo do parasita, que é muito mais complexo do que o de um vírus. A imunidade imediata, portanto, não resolve o problema. Precisa-se de algo que forneça uma proteção que dure mais tempo”, explica Werciley Junior. Diante desse quebra-cabeça, a equipe de Luiz Fabiano resolveu mirar outra frente de combate: o próprio mosquito transmissor, não o parasita transportado por ele.

A leishmaniose é transmitida pela picada de fêmeas do mosquito-palha infectadas. Ao se alimentarem de sangue, elas danificam a pele do hospedeiro e provocam uma resposta imediata do organismo da pessoa ou do animal atacado. Os flebotomíneos, como também são chamado os mosquitos-palha, desenvolveram maneiras criativas para contornar essa reação imediata. Uma delas é a produção de componentes ativos, na própria saliva, capazes de neutralizar a resposta do hospedeiro. Mas justamente esse artifício podem ser usado contra o parasita, acreditam os autores do novo estudo.

Mesmo em concentrações baixas, essas moléculas contidas na saliva do inseto são potentes e influenciam profundamente a fisiologia do hospedeiro. Estudos anteriores indicaram que roedores imunizados com proteínas presentes na saliva dos insetos ou picados por mosquitos não infectados ficaram protegidos contra a leishmaniose cutânea e visceral. No trabalho de Luiz Fabiano — que teve participação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Fundação Oswaldo Cruz —, verificou-se a capacidade da proteína PdSP15 de proteger macacos rhesus picados por mosquitos infectados.

Defesa recrutada
Para isso, os cientistas expuseram as cobaias saudáveis a 20 picadas de mosquitos-palha não infectados. O processo foi repetido a cada 21 dias. Na primeira rodada de experimentos, um resultado chamou atenção: mais de 60% dos macacos apresentaram resposta imune, mostrando que a picada não contaminada recrutou células de defesa para o local da mordida 48 horas após o “ataque”.

“No nosso caso, a resposta protetora em macacos foi correlacionada com a resposta celular. Isso é importante porque indica que anticorpos não devem ser necessários para a produção do imunizador, o que é diferente, por exemplo, do que é feito com as vacinas contra viroses”, explica Luiz Fabiano ao Correio. Então, o ponto forte da vacina feita com saliva é que, em vez de injetar anticorpos preparados para combater o mosquito, ela incentiva o recrutamento rápido de células — especialmente linfócitos T e macrófagos — para o local da picada.

Sempre que os animais eram picados pelo mosquito, as células “corriam” para onde estava o “buraquinho” da mordida. “Esse recrutamento torna o ponto inóspito para o parasita, evitando que ele se estabeleça no hospedeiro”, conclui o autor. Esse efeito já tinha sido observado em modelos animais, mas é a primeira vez que é comprovado em macacos, animais mais parecidos com o homem. “Isso é um passo a mais para estudos com humanos”, diz Luiz Fabiano.

Duas perguntas para...
Luiz Fabiano Oliveira, pesquisador dos Institutos Nacionais da Saúde (INS), nos Estados Unidos, e principal autor do estudo

Essa linha de pesquisa, a da saliva do mosquito, é antiga?
O início primordial do uso da saliva de vetores remonta a estudos de um brasileiro na Universidade de Harvard, na década de 1980: José Marcos Ribeiro, que também trabalhou na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele foi orientador de Jesus Velenzuela, que me convidou para pesquisar no INS em 2003. Velenzuela estava iniciando o próprio laboratório e já tinha colaborações com a Fiocruz/Bahia. Já conhecia a minha orientadora no Brasil, Aldina Barral, da Fiocruz/Bahia. Hoje, sou funcionário fixo dos institutos como staff scientist. Esse projeto começou entre 2008 e 2009.

Dê mais detalhes sobre a PdSP15.
Ela foi descoberta, ou redescoberta, quando fizemos um screening (detalhamento) de 23 proteínas da saliva desses insetos. Digo redescoberta porque tínhamos evidência de que um homologo de outro vetor protegia roedores. Das 23, a PdSP15 foi a única que apresentou perfil de proteção. Gostaríamos de ter testado outras também, mas o orçamento ao se trabalhar com macacos tem que ser minimizado.

Também previne
Em uma segunda etapa do experimento, para testar a imunização oferecida pela saliva não infectada, os cientistas liderados por Luiz Fabiano Oliveira criaram mosquitos contaminados com o parasita e expuseram os macacos que já haviam sido picados anteriormente por insetos sem a infecção. Os resultados também foram promissores: pelo menos metade das cobaias ficou protegida contra a leishmaniose cutânea. Para melhorar ainda mais, seria excelente que, além da proteína da saliva, fossem utilizadas partes do próprio parasita, avalia o estudioso brasileiro.

“Gostaria de ressaltar a importância de se usar o vetor (mosquito) na infecção. Muitas vacinas contra a leishmaniose foram testadas em laboratórios com sucesso, mas não se mostraram eficientes em humanos”, observa Luiz Fabiano. Segundo ele, todas contaram com a inoculação direta de parasitas em roedores e macacos. “O nosso diferencial é que a nossa protegeu os animais contra as picadas de 50 vetores infectados e, por isso, é mais semelhante ao que ocorre na natureza”, compara.

O próximo passo é saber se os resultados podem ser replicados em humanos. Por determinação da Food and Drug Administration (FDA) — uma espécie de Anvisa dos EUA — , antes dos testes clínicos com humanos, é preciso testar a toxicidade em animais. “O que não é muito problemático, pois essa proteína é inoculada em humanos a todo tempo, especialmente nas regiões endêmicas”, explica Luiz Fabiano. Enquanto os requisitos da agência não são cumpridos, a ação da proteína foi testada in vitro com amostras de células do sangue humano. “Vimos, assim, que indivíduos que são naturalmente expostos à picada respondem positivamente a essa proteína”, conta.

Essa constatação é um dos focos de atenção da pesquisa. Isso porque a grande maioria das pessoas tem leishmaniose uma vez, ou seja, desenvolve imunidade após a cura. “Parte do nosso interesse é entender por que em áreas endêmicas existe muita gente positiva para o parasita, mas que nunca teve a doença”, questiona cientista. Segundo o brasileiro, a condição sinaliza que é possível que essas populações estejam sendo protegidas pelas picadas dos mosquitos não infectados, assim como foi observado nos macacos rhesus.