Especialistas divergem sobre uso de remédios que alteram o estado psíquico

Não há consenso entre os especialistas sobre as vantagens e os malefícios de substâncias como relaxantes e ansiolíticos.O embate foi retratado em edição de renomado jornal científico britânico

por Isabela de Oliveira 05/06/2015 15:00

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Christiano Gomes  / CB / D.A Press
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Comportamentos fora da linha já foram atribuídos a forças externas. A possessão demoníaca, por exemplo, justificou muitos dos casos que, durante a Inquisição, foram solucionados na fogueira. A ciência derrubou o link entre o sobrenatural e atividades racionais. Descobertas de bases biológicas de doenças e transtornos psiquiátricos provocaram uma reviravolta na forma como o homem lida com a própria mente. Com elas, surgiram diagnósticos e, principalmente, drogas que prometem reorganizar psiques alteradas. Esses tratamentos, porém, dividem opiniões e têm, cada vez mais, seus benefícios colocados em xeque.

O excesso de prescrição e de ingestão é um dos principais argumentos de especialistas como Peter Gotzche, diretor do Nordic Cochrane Centre, ligado ao Hospital Nacional da Dinamarca. Segundo ele, 98% do consumo das substâncias psicotrópicas poderia ser interrompido sem prejuízo aos pacientes. Gotzche diz ainda que os ensaios clínicos para validar as drogas subestimam os danos e exageram os benefícios. Um outro grupo de especialistas — entre eles, Allan Young, professor e diretor do Centro de Distúrbios Emocionais da King’s College London, no Reino Unido — diverge dessa opinião. Desde que cuidadosamente prescritos, defendem, esses remédios proporcionam alívio a quem realmente precisa deles. Eles ponderam, porém, que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose.

Young e Gotzche esquentaram o debate após exporem recentemente as opiniões distintas no periódico The British Medical Journal. Gotzche diz que, anualmente, 500 mil pessoas morrem em decorrência da ação de medicamentos psiquiátricos no mundo ocidental. Para que tantas vidas fossem sacrificadas, argumenta, os benefícios deveriam ser colossais. “Mas eles são, no mínimo, exagerados”, critica. Segundo o especialista, quase todos os testes clínicos para a aprovação dos psicotrópicos são tendenciosos por incluírem pacientes já submetidos a esses tratamentos, muitos, inclusive, viciados na substância avaliada. Por isso, é natural imaginar que os sintomas piorem quando elas são retiradas. Há, portanto, diz Gotzche, uma incidência maior de suicídios entre os usuários desses medicamentos. Os casos seriam subnotificados por pressão da indústrias farmacêuticas.

Autor do livro Remédios que curam: remédios que matam — o lado negro da indústria farmacêutica, o médico brasileiro Artur Lemos também acredita na manipulação dos dados. “Há, na realidade, uma omissão. Quem deveria fazer esse tipo de pesquisa seriam, exclusivamente, as universidades”, defende. Embora a ingestão dos medicamentos esteja crescendo no mundo, especialmente nos países emergentes (veja arte), o cardiologista diz que os antidepressivos não exercem efeito sobre dois terços dos usuários. “A eficácia é pequena e há risco aumentado de suicídio. Um medicamento utilizado para tratar a depressão maior, feito à base de cloridrato de paroxetina, foi proibido na Inglaterra, mas liberado pela Food and Drug Administration (espécie de Anvisa dos Estados Unidos), o que resultou em uma onda de suicídios entre crianças e adolescentes”, conta.

Lemos também cita o clonazepam, um dos medicamentos mais consumidos no Brasil e no mundo. De acordo com o Registro Nacional de Fornecimento de Medicamentos Controlados aos Usuários, houve aumento de 161% no consumo da substância de 2009 para cá. “É um anticonvulsivo que virou calmante. É prescrito para qualquer coisa. Às vezes, parece que o médico quer se livrar do paciente e prefere prescrever uma droga a tentar entender o problema”, critica. Na avaliação do médico, o maior problema dessas drogas é que elas afetam a memória e tiram os pacientes da realidade. “Deveriam ser usadas por pessoas realmente doentes, mas a impressão é de que virou uma coisa corriqueira”, lamenta. Seguindo a mesma linha, Gotzche sugere que os psicotrópicos sejam usados quase que exclusivamente em situações agudas, e sempre com um plano de redução gradual. “Precisamos de novas diretrizes e de clínicas para a interrupção dos medicamentos, porque muitos pacientes se tornam dependentes”, propõe.

Limitação perigosa

O psiquiatra Allan Young também recorre à complexidade, só que das doenças, para defender a ingestão de psicotrópicos. Ele explica que as condições psiquiátricas são comuns, delicadas e, muitas vezes, com tratamentos de longo prazo. Por isso, é difícil determinar — e limitar — o tempo de uso dessas drogas para alguns pacientes. Young reconhece que as taxas de mortalidade apontadas por Gotzche realmente são maiores entre pessoas com transtornos psiquiátricos, como psicose e distúrbios de humor e personalidade, mas faz uma ressalva: não decorrem completamente dos suicídios, mas de comorbidades físicas associadas às doenças mentais.

“Há uma necessidade clara de tratamento desses distúrbios psiquiátricos para reduzir os danos de longo prazo que estão associados a eles. A chave é saber se as drogas psiquiátricas vão fazer mais mal do que bem”, pondera. Com isso, Young defende que todas as intervenções terapêuticas dependam da avaliação aprofundada dos benefícios e dos malefícios delas. “Assim como para qualquer remédio”, completa. Ele ressalta que as agências reguladoras são responsáveis por assegurar que essas drogas funcionem com segurança e que há também as avaliações de benefícios e danos baseadas em pesquisas com grupos grandes.

O estudioso da instituição britânica acredita que os críticos dos psicotrópicos precisam fazer uma “análise mais equilibrada” dos dados científicos disponíveis. Cita como exemplo o caso do lítio, cuja eficácia e segurança para o tratamento de complicações neuropsiquiátricas têm sido muito questionadas, ecoando uma “rotulação antecipada de ‘placebo tóxico’”. Segundo ele, estudos recentes confirmaram a eficácia da substância e mostraram que os efeitos adversos são menores do que o imaginado. “Naturalmente, deve ser usado com cuidado, mas pesquisas mostram que, se as orientações forem seguidas, o dano a longo prazo é mínimo, e novos benefícios, como a redução em suicídios, se tornam aparentes”, completa.
Estudos envolvendo pacientes com transtorno de humor trazem constatações nesse sentido. Um deles, feita pelo Instituto de Medicina Preventiva e Social da Universidade de Zurique, acompanhou 406 pacientes com transtorno emocionais durante 22 anos. Após esse período, 76% haviam morrido. Aos analisar as causas da mortalidade de 99% dos casos, os cientistas concluíram que, em todos os grupos, as taxas de suicídio foram significativamente menores. “Em resumo, drogas psiquiátricas são rigorosamente examinadas para eficácia e segurança antes e depois da aprovação regulatória”, garante o psiquiatra.

Duas perguntas para...
Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria

Como o senhor percebe as críticas aos testes desses medicamentos?
Os médicos devem tomar cuidado ao falarem que os medicamentos são perigosos, pois eles infringem um código de ética, gerando pânico onde não há dúvida. Colocam em xeque a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Conselho Federal de Medicina. Precisamos sempre saber se há conflitos de interesse, porque ninguém diz que algo é muito bom ou muito ruim a troco de nada. Há, sim, estudos financiados por farmacêuticas. São coisas que o Estado deveria fazer, mas se omite. Mesmo assim, são ensaios que seguem padrões éticos e normas muito rígidas. A aprovação dos medicamentos também passa por um filtro muito sério.

Há uma banalização do uso dessas drogas?
Nem todos os diagnósticos são perfeitos. Além disso, todo medicamento tem contraindicações e efeitos colaterais. Por isso, é preciso entender muito bem cada caso. O que defendemos sempre é o uso racional dos psicotrópicos, de forma pensada e controlada. Estão sendo mais usados porque a população cresceu e está mais velha, e há um aumento do tempo de ingestão das substâncias. Isso não é exclusivo dessas drogas. O problema é que as pessoas estão sempre procurando milagres, uma reposta rápida. Muitos chegam ao consultório pedindo medicamentos específicos, e é nessa hora que o médico precisa estar muito atento, é responsabilidade dele.