Deu saudade da Ana

por Zulmira Furbino 06/04/2015 09:50

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Lelis/EN/DA Pess
(foto: Lelis/EN/DA Pess)
Ana era uma negra bonita e benfeita de corpo. Usava um lenço colorido amarrado atrás da cabeça, vestidos que lhe caíam bem, mas não tinha nenhum dente na boca. Trabalhava em nossa casa. Mamãe dizia que era louca.
Ali pelos meus 13 ou 14 anos, me mandaram acompanhar Ana ao médico, já que ela não poderia ir sozinha. Fui a contragosto. Tomamos um ônibus saindo da Avenida Catalão, no Caiçara, descemos na Pedro II e seguimos a pé até o consultório médico, acinzentado pela poeira da Rua Três Pontas, no Carlos Prates.
Esperamos quase três horas até que ela fosse atendida. Ana estava impaciente. Eu não aguentava mais – e ainda por cima tinha medo que ela tivesse um “acesso”. Não fosse pelo medo da reação de mamãe, teria tentado convencê-la a ir embora.
Tenho uma vaga lembrança, uma sensação, talvez, de que, quando entrou no consultório, separado da recepção por uma parede de compensado, o médico agia com ela de modo estranho. Finalmente, a consulta acabou e nós duas voltamos a pé para a Pedro II e depois tomamos o 104, um ônibus que descia a Catalão e rodava sempre lotado.
Seria preciso pagar a passagem e depois atravessar depressa aquele mundaréu de gente que se amontoava no coletivo, porque o ponto da descida chegava rápido. Paguei, passei na roleta, a Ana junto de mim, até que puxei a corda do sinal e ela estacou.
Falei para a Ana que a gente tinha de descer, ou iríamos para muito longe de casa. A danada não se movia. Comecei a ficar nervosa. O lotação reduziu a velocidade e parou. Ana se recusava a se aproximar da porta de saída dizendo que o ponto não era ali.
Então, do alto da minha criancice, dei um piti e disse a ela que desceria sozinha, pois não iria parar não sei onde, àquela hora da noite, só porque ela era doida e não sabia em qual ponto deveria descer na hora de voltar pra casa. Horrível, mas foi assim.
O ônibus parou. Desci pensando que a Ana teria medo de ficar sozinha lá dentro e viria comigo, mas ela não saiu do ônibus. Fiquei ali, à noite, em frente ao Cemitério da Paz, com as pernas tremendo, pensando que ela nunca mais seria encontrada e a culpa era toda minha.
Como o ônibus arrancou e seguiu em frente, não tive outra opção senão voltar sozinha. Nem preciso dizer que foi um deus nos acuda, mas que foi, foi. Quarenta minutos depois, quem aparece lá na ponta do terreiro? A Ana, claro.
Naquele dia, por ter sido obrigada a levá-la ao médico quando queria mesmo era jogar queimada com a minha turma (e pelo episódio da noite, quando ela se recusou a descer do ônibus), senti uma raiva imensa da Ana.
Só depois, mais crescida, compreendi que ela não era mais maluca do que eu ou qualquer um. Seu mal foi nascer pobre, sofrer de epilepsia e não contar com qualquer tipo de apoio familiar para fazer um tratamento adequado.
Noite dessas, enquanto comia um sanduíche de filé com alface e tomate no Renato Burger, vi um senhor vestido com simplicidade e capricho, catando latinhas. Ao tomar conhecimento da história dele – seria dono de um lote na Zona Sul e sua obsessão é amontoar latas vazias de cerveja e refrigerante nesse lote, sem vendê-las –, bateu saudade da Ana e daquilo que mamãe considerava que fossem as loucuras dela.
Saí do Renato pensado que, loucura mesmo, né, pessoal, é o copiloto entrar num avião e, deliberadamente, lançar a aeronave contra os Alpes franceses, matando 150 pessoas. É pensar que nossas vidas certamente estão sendo monitoradas pelo Facebook, WhatsApp, Google, Skype e afins.
Doido, no sentido menos humano da palavra, é testemunhar pais que estimulam crianças a xingar a maior autoridade do país com os piores palavrões – e imaginar que tipo de adulto elas correm o risco de se tornar. É pensar que tem gente que defende a volta dos militares e a redução da maioridade penal no Brasil.
Loucuras como as da Ana e a do senhorzinho catador de latas da Zona Sul são fichinha perto desse mundo revirado que está aí.